segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Ode marítima (excerto)












Fernando Pessoa
por
Alfredo Luz






 […]

Tremo com um frio de alma repassando-me o corpo
E abro de repente os olhos, que não tinha fechado.
Ah, que alegria a de sair dos sonhos de vez! 
Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos! 
Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquetes que chegam cedo. 

Já não me importa o paquete que entrava. Ainda está longe. 
Só o que está perto agora me lava a alma. 
A minha imaginação higiénica, forte, prática, 
Preocupa-se agora apenas com as cousas modernas e úteis, 
Com os navios de carga, com os paquetes e os passageiros, 
Com as fortes cousas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras. 
Abranda o seu giro dentro de mim o volante. 

Maravilhosa vida marítima moderna, 
Toda limpeza, máquinas e saúde! 
Tudo tão bem arranjado, tão espontaneamente ajustado, 
Todas as peças das máquinas, todos os navios pelos mares, 
Todos os elementos da actividade comercial de exportação e importação 
Tão maravilhosamente combinando-se 
Que corre tudo como se fosse por leis naturais, 
Nenhuma coisa esbarrando com outra! 

Nada perdeu a poesia. E agora há a mais as máquinas 
Com a sua poesia também, e todo o novo gênero de vida 
Comercial, mundana, intelectual, sentimental, 
Que a era das máquinas veio trazer para as almas. 
As viagens agora são tão belas como eram dantes 
E um navio será sempre belo, só porque é um navio. 
Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve 
Em parte nenhuma, graças a Deus! 

[…]

Álvaro de Campos, “Ode Marítima”, in Poesia dos Outro Eus,
 Casais de Mem Martins, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2007