quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O Menino Jesus não queria ser Deus


O menino Jesus não fugia à escola. Os outros meninos juntavam-se para fazer maldades, o menino Jesus ficava sempre de fora. Os meninos tinham pena dele, mas tinha que ser assim: ele era Deus, e Deus não pode fazer determinadas coisas.
Por isso, o menino Jesus não ia para o rio roubar fruta, nem dizia coisas indecentes. Nem sequer podia jogar à bola com os outros, porque fazia sempre milagres.

Até que um dia o menino Jesus foi ter com S. José e disse-lhe:

- Pai, não quero ser mais Deus.

- Isso não é comigo, é com a tua mãe.

Foi ter com a Virgem Maria. Mas ela disse-lhe:

- Agora já és Deus e pronto. Já não se pode fazer nada. Tu hás-de habituar-te, a mim a princípio também me meteu confusão. E agora vai estudar, porque amanhã tens que ensinar os doutores da lei.

O menino Jesus ficou muito triste e nessa noite não estudou nada. O milagre dos doutores por pouco ficava estragado. Nossa Senhora zangou-se e disse-lhe que o acusava à pomba.

Mas ele, como era Deus, sabia tudo; portanto, sabia que as pombas não fazem mal a ninguém e ria-se da Virgem Maria. S. José também lhe dizia:

- Não metas medo ao rapaz. Não te calas com o diabo da pomba, tu és mas é maluca.

- Não tens nada com isso. Ainda se o menino fosse teu filho, mas não. Falas só para questionares, és mau. Daqui a pouco começas para aí a dizer porcarias.

Mas estas discussões acabavam sempre bem, porque o menino Jesus fazia um milagre.

Um dia pediu à mãe um irmão, mas ela respondeu-lhe de maus modos. Os vizinhos riam-se muito de S. José, faziam troça de S. José por o filho dele ser filho de uma pomba, e como S. José era muito bom, o menino Jesus tinha pena e fazia mais milagres.

Um dos vizinhos tinha um filho muito mau chamado Alberto Caeiro, que nunca ia à escola, que se metia com as raparigas. O menino Jesus tinha muita inveja dele porque ele sabia nadar como ninguém e era dono duma caverna ao pé do rio.

Às vezes ia espreitá-lo e via-o lá dentro com as raparigas.

Acendiam fogueiras, comiam. O que o menino Jesus mais queria era ser um rapaz como ele. Mas a mãe queria que ele fosse Deus e o Deus que estava no céu também queria que ele fosse Deus, porque alguém tinha que viver aquela vida que estava escrita nos livros, uma vida pequenina (só durava 33 anos) e ainda por cima que acabava mal! O menino Jesus sabia tudo isto porque era Deus, e podia adivinhar.

Como era muito bom, não queria zangar a mãe, nem aborrecer o pai do céu. Mas também não queria ser mais Deus, porque ele é que sabia o que aquilo era.
E então começou a convencer o outro rapaz a trocar com ele. O outro a princípio não queria, bateu-lhe, etc. O menino Jesus podia ter feito um milagre, fazer-lhe cair o braço, ou chamar as legiões de anjos todas. Mas não. Disse-lhe assim:

- Ou trocas comigo ou transformo-te num porco.

O rapaz ficou assustadíssimo e fugiu para casa. Mas o menino Jesus fê-lo voltar para trás com um milagre. E voltou a dizer-lhe:

- Já sabes. Agora escolhe.

O outro estava muito aflito. Ofereceu-lhe a caverna, ofereceu-lhe tudo. Mas o menino Jesus não quis.

- E depois eu, também posso fazer milagres?

- Sim, disse o menino Jesus.

- Então obrigo-te a destrocar outra vez comigo.

E quando disse isto julgou que tinha vencido o menino Jesus. Mas o menino Jesus disse:

- Agora ainda sou Deus. E posso fazer um milagre. Esse milagre é que tu não possas nunca obrigar-me a destrocar.

- Está bem, disse o outro.

Foram sozinhos para a floresta e lá fizeram a troca. O menino Jesus ficou o outro, e o outro ficou menino Jesus. E vieram por aí fora a conversar os dois.

E só depois é que viram: afinal de contas não tinham trocado nada, porque o menino Jesus só fazia coisas perfeitas e a troca fora tão perfeita que tinha ficado tudo na mesma. E o menino Jesus, o de agora, voltou para casa muito aborrecido.
Afinal o pai do céu era mais esperto do que ele. E fez mesmo umas figas, coisa que nunca tinha feito na vida, quando, ao deixar as últimas árvores da floresta, viu uma pomba muito branca que levantava voo, fugia.

- Oh, disse ele quase a chorar.

Manuel António Pina, O País das Pessoas de Pernas para o Ar

Foto in Papa-Livros (Blogue)