quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Flor de baunilha

Cf.
http://blogni.blog.com/
onde, para além da imagem,
se podem ver interessantes
informações sobre a
proveniência da baunilha,
confirmando as do poema.





Hoje, os olhos fundos do meu pensamento são negros como o alcatrão,
e o morno palpitar da sua carne um malicioso levedar de canela.
Neste momento, enquanto alguns milhões de homens fossam na conquista do seu pão,
estou eu pensando nela.

É uma espécie de orquídea sarmentosa,
um récipe de mel, de resinas e hormonas,
vaso de sílex, boceta especiosa,
cântaro de água, taleigo de azeitonas.

Quando ergue as pálpebras é como se de repente o galo do campanário cantasse,
é como se o vento arrebatasse o muro e libertasse a paisagem cativa.
Seus grandes imensos olhos redondos, botões de obsidiana à flor da face,
firmam-se-me, ofegantes e estáticos, como sardões em expectativa.

Na noite cerrada dos seus cabelos acasalam-se os pirilampos,
e os sapos dedilham os sistros, assolapados nos lameiros.
No côncavo das minhas mãos, vaza e molda o silêncio nocturno dos campos,
e a sua cabeça no meu ombro é o barco escondido entre os salgueiros.

Sua carne cheirosa, fofa e tépida, como a terra estrumada,
aceita, na intimidade dos poros, a semente brunida que acordará em pão.
Ah! É verdade! O pão!

Os homens que não têm pão!
As mulheres dos homens que não têm pão!
Os filhos dos homens que não têm pão!

Baixa as pálpebras, flor de baunilha.

António Gedeão, Poesias Completas (1956-1967),
Lisboa, Portugália Editora, 1975, 5.ª ed.