terça-feira, 27 de outubro de 2009

Reconheço as ruas...
















Reconheço as ruas e as paredes da infância
mesmo aquelas que já foram derrubadas.
Estava a comer só quando pensei nisto. E agora penso
nas coisas em que pensamos quando comemos sós.
Só posso falar por mim. Converso com o vento, vou com as aves
sobre os gumes aguçados das montanhas, por ali me demora planando
sentindo-me leve, leve, leve, tão leve como se não tivesse pecados ou acabasse de confessar-me.
Volto à cidade, volto a mim, é preciso escolher o vinho, sim, pode ser um Borba,
agora estou eu desencontrado com os meus projectos, as coisas não são feitas como eu penso,
deixo-as ficar assim, mas a minha estratégia era quase imbatível,
entretanto esta história da casa preocupa-me,
é muito dinheiro, o empréstimo compromete-me quase até à morte,
bom, se calhar tenho sorte e chego aos oitenta, até mais quem sabe?,
mas também posso apagar-me de um momento para o outro,
não seria nem o primeiro nem o último. Para sobremesa
quero fruta, um pêssego, não, talvez uma laranja, se for doce.
Ah!, tenho de falar ao editor, saber como vai a minha antologia,
talvez haja boas notícias, acho que está a ler-se mais outra vez,
já baixou a febre da informática e dos audiovisuais,
o que é que andará o Hugo a fazer, estou preocupado com ele,
a minha filha ficou de telefonar e o mais velho há dias que não diz nada,
não deve estar a precisar de mim, se não já tinha aparecido.
Os filhos são óptimos quando são pequenos, é bom vê-los crescer
mas o que eu não daria para tê-los de novo crianças,
aqueles olhos vivos, as palavras deformadas por excessos de ternura,
um café, se faz favor, não é preciso açúcar.
Os filhos, os filhos, que pensarão eles de mim daqui a trinta anos?,
possivelmente qualquer coisa semelhante ao que eu penso hoje do meu pai,
se fosse assim não era mau, melhor, era até justo, tenho sido um bom pai,
adoçante também não, muito obrigado. Não sei
por que é que esta gente faz tanto barulho, deviam estar todos mais magros,
conversam mais do dobro do que comem. Não, não,
fico-lhe muito agradecido mas não gosto de jogar na lotaria,
sorte é coisa com a qual nunca pude contar muito,
como diz o outro, tenho subido a corda a pulso.
A conta, por favor! Tenho tanta coisa para fazer esta tarde,
provavelmente guardarei para amanhã alguma coisa do que posso fazer hoje,
serei cliente de mim mesmo, tratar-me-ei com toda a deferência
e simpatia - uma factura, por favor! - isso, com muita simpatia,
arranjarei forma de ser simpático comigo mesmo,
ando cansado de gastar a minha simpatia com os outros.
Acho que mereço um bocadinho mais do que me têm dado,
ou talvez seja eu que dê demasiado por aquilo que me oferecem,
não sei, francamente não sei, não é o sítio nem tenho tempo para pensar nisso agora,
por que é que o tipo leva tanto tempo a trazer-me a factura?,
só faltava agora o telefone! ah, és tu!, não, quero dizer, sim,
não me demoro, já falamos nisso, não decidas nada sem eu chegar!,
é isto, também tenho que decidir com os outros e às vezes pelos outros,
estas coisas são mais difíceis do que parecem, a minha mulher
diz que passo o tempo em reuniões, que rico emprego,
não se faz mais nada a não ser umas reuniõezinhas, assim também eu, diz ela,
mas ela sabe lá o tamanho dos sapos que eu tenho de engolir,
agora por isso, olhe, por favor, falta a factura, já estou atrasado,
mas atrasado para quê, os meus grandes problemas não se resolvem hoje,
há coisas que esperam por nós uma vida inteira,
nós levamos uma vida inteira a esperar por certas coisas,
melhor seria eu hoje não ir a lugar nenhum - ah, a factura, obrigado! -
sinceramente não sei que faça, vou andando, já penso nisso,
preciso é de dar descanso à minha cabeça,
vim eu almoçar sozinho para não ouvir falar de problemas,
afinal aí estão os meus, gaita!, misturar problemas com filetes,
não há coração ou fígado que aguentem!, e mesmo sem interesse
não há nada como uma tagarelice à mesa
embora a minha mãe sempre me dissesse e insistisse,
Joaquim, eu já te disse que não se fala à refeição.

Joaquim Pessoa, Vou-me Embora de Mim,
Lisboa, Hugin, 2000

(itálicos do poema da minha responsabilidade)