segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Mozart comestível

Ninguém sabia que o pobre Mozart tinha os bolsos cheios de moedas de ouro.
O pobre homem despia todas as noites as desventuradas calças, e ao tirá-las caíam ao chão as tilintantes moedas.
Mas como a esposa era meio surda, acreditava que se tratava de moedas de chumbo.

A senhora de Wolfgang Amadeu Mozart era muito rigorosa nos costumes.
Pensava sinceramente que as feridas daquele tão elegante coração se fechariam com curitas Johnson.
E aplicava-lhos em vão todas as noites, enquanto o formoso coração de Mozart se esvaía em sangue silenciosamente, como um frasco de xarope que em segredo se quebra dentro do saco das compras.

Mozart tinha muito mau carácter, muito má memória e muito má sorte.
Especialmente uma vista péssima.
Um dia subiu a uma nuvem pensando que era o autocarro.
Outra vez vendo sair em voos sucessivos umas pombas do pombal, pôs-se a gritar em plena rua: Epa, epa, estão a fugir as luvas!

Era um homem muito formoso e segundo se diz alimentava-se com meias de seda.
Era também muito descuidado, à hora do banho engolia o sabão acreditando que era uma amêndoa.
Uma vez a Mozart pôs-lhe a polícia as mãos em cima, porque ao pedir-lhe o bilhete de identidade apresentou-lhe uma rosa.
Mozart era muito mal educado: durante as recepções comia o perfume das senhoras e beijava-lhes a roupa em público.
No dia em que morreu Mozart estava a nevar, e os amigos em vez de enterrá-lo decidiram comê-lo como se fosse um sorvete.

Aquiles Nazoa, Poemas Populares (Antologia),
Caracas, Monte Ávila Editores, 1995, 3.ª ed.

(Tradução de Anthero Monteiro: foi mantida a pontuação original)
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Aquiles Nazoa: o poeta mais popular da Venezuela, graças ao humor de muitos dos seus poemas, como acontece neste caso, em que utiliza uma estratégia, como se vê, algo surrealista.