quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Que sabemos nós...

Que sabemos nós da dor de cada um?

sabemos dum rio dum pomar duma flor
dum pássaro morto na primavera
e tudo isso escrevemos num poema

- mas das dores de cada um que sabemos nós?

dos homens anónimos que viajam na solidão dos eléctricos
dos meninos que amanhecem mortos
junto aos muros das grandes cidades que sabemos nós?

sabemos dum nome que o jornal traz todas as manhãs
mas dos homens que vendem os jornais que sabemos nós?

sabemos acaso como doem as suas lágrimas no silêncio
quando a tarde é uma pedra de melancolia
caindo sobre os ombros?
ah tudo isso escrevemos num poema
mas de tudo isso que sabemos nós?

quando as luzes se acendem na cidade
e a noite é uma lágrima
que sabemos nós do desespero das mãos vazias
dos olhos que não vêem mais que a noite
para além duma janela sem cortinas?

ah tudo isso escrevemos num poema
mas dos que ficam para contar aos que vierem
das suas dores na madrugada
e da esperança que a noite trará um dia às suas mãos vazias
e aos seus olhos que não vêem mais que a noite
para além duma janela sem cortinas que sabemos nós?

- ah tudo isso escrevemos num poema.


Luís Pignatelli, Obra Poética, Lisboa, &etc, 1999

Nasceu em Espinho em 1 de Janeiro de 1935. Aí fez a instrução primária e frequentou o Liceu, ficando por aí os seus estudos, exceptuando os do autodidacta na escola da Vida. Trabalhou nas Águas da Câmara Municipal de Coimbra, foi jornalista em Moçambique e regressou a Coimbra para ser funcionário de estatística do Município, colaborando na imprensa local como crítico de música e artes plásticas. Colaborou também nas revistas Bandarra e Vértice e nos suplementos literários de vários jornais, como o Diário de Lisboa, A Capital, o Jornal de Notícias, o Diário, o Jornal do Fundão e muitos mais. Entre os seus amigos mais conhecidos contam-se José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, que deram voz a alguns poemas seus, Manuel Alegre, José Cardoso Pires, Luiz Pacheco, Cesarinny, O'Neill, etc. Foi ainda tradutor e revisor literário, "profissão (?) que não deseja ao seu pior inimigo". Morreu em Lisboa a 20 de Dezembro de 1993.

(Cf. Nota Biográfica de Zetho Cunha Gonçalves in op. cit.)