terça-feira, 7 de outubro de 2008

Dois cigarros

Cada noite á a libertação. Contemplam-se os reflexos
no asfalto das avenidas que se abrem luminosas ao vento.
Cada raro transeunte tem um rosto e uma história.
Mas a esta hora deixa de haver cansaço: os milhares de luzes
são todos para quem pára para riscar um fósforo.

A chamazinha apaga-se contra o rosto da mulher
que me pede lume. Apaga-se com o vento
e a mulher, frustrada, pede-me outro,
que também se apaga: a mulher agora ri-se baixinho.
Aqui podemos falar em voz alta e gritar,
que ninguém ouve. Erguemos os olhar
para todas as janelas - olhos apagados que dormem -
e esperamos. A mulher encolhe os ombros
e queixa-se de que perdeu o xaile às cores
que a aquecia à noite. Mas basta apoiar-se
contra a esquina e o vento não é mais do que um sopro.
No asfalto gasto há já uma beata.
Este xaile veio do Rio, diz-me a mulher,
que está contente por tê-lo perdido, pois me encontrou.
Se o xaile veio do Rio, atravessou de noite
o oceano inundado de luzes pelo grande transatlântico.
Noites de vento, sem dúvida. É um presente dum seu marinheiro.
O marinheiro desapareceu. A mulher sussurra-me
que, se for com ela, me mostra o retrato
de caracóis e bronzeado. Viajava em vapores sebentos
e limpava as máquinas: eu sou mais bonito.

No asfalto há duas beatas. Olhamos para o céu:
a janela lá em cima - aponta com o dedo - é a nossa.
Mas lá em cima não há aquecedor. De noite, os navios perdidos
têm poucas luzes ou apenas as estrelas.
Atravessamos o asfalto de braço dado, brincando a aquecer-nos.

Cesare Pavese, Trabalhar Cansa, Lisboa, Cotovia, 1998
(Tradução de Carlos Leite)