segunda-feira, 6 de outubro de 2008

No chão da noite





"..aprendi a andar
no chão da noite"
José Gomes Ferreira, Memória II




1. À noite, quando o sul e o norte se confundem, em cada cidade adormecida, uma sombra agoniza no escuro.


2. Nas madrugadas de chuva, o lamento da noite não comove - porque é mais densa e bravia a memória do sangue, vertido a coberto do sono e das pálpebras do mundo.
Nas madrugadas de chuva, cala-se a voz do rio, as miragens fenecem, e o calor do linho não chega para aplacar o frio e apagar a imagem dos que no escuro se perderam.


3. Como um navio em águas sombrias os olhos cruzam a noite e uma janela de luz os retém.
Sentado, um homem luta ainda com as palavras. A noite vai cumprindo o que a mão resiste a escrever: "rotinas de sangue suor e pranto".
E ante o comum lugar da fórmula, a última lâmpada apaga-se e tinge de silêncio o verso que a luz não quis reter.


João Pedro Mésseder,
in Vários, Recomeço Límpido, Porto, PCP, 2000