quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A noite


Ave do céu, a noite abriu as asas
e a sombra adormeceu os sons e as cores.
Um manto negro-azul vestiu a tarde,
evola-se em perfume a alma das flores.
Penteia a Lua os pálidos cabelos,
em madeixas, em fios de luar.
Agora toda a música é silêncio,
silêncio grave, sonho a flutuar.
Pulsa em surdina o coração do vento,
embalando em cadência, a folha, o ninho.
Flor-de-lótus no lago adormecido,
o cisne fecha as pétalas de arminho.
Na terra viva de milhões de vidas,
as sementes palpitam e as raízes:
rasgam-lhe a pele ardente as mãos dos homens,
tapam-lhe as mãos da chuva as cicatrizes.
Um frémito perpassa, o vento acorda,
a chuva cai, a noite fecha as asas…
Estrela a estrela, apagam-se as estrelas,
a manhã, casa a casa, acende as casas.
A cor e os sons despertam; canta a fonte
um canto de água, balbuciante e vago.
Surgem da noite os sete véus da aurora,
desfolha-se o arco-íris sobre o lago.

Fernanda de Castro, 70 Anos de Poesia,
Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1989
Foto retirada, com a devida vénia, do blogue de seu filho António Quadros,
fernanda-decastro.blogspot.com,
onde se encontra toda a informação fidedigna sobre a escritora.
Na foto podem ver-se Natália Correia e Ary dos Santos, de quem era amiga, como era, aliás, de José Gomes Ferreira, Almada Negreiros e Drummond. Ary considerou África Raiz de Fernanda de Castro «o poema do século».
«Numa geração e num país que de mulheres quase só conheceu vítimas domésticas, Fernanda de Castro foi uma das poucas personalidades femininas que seguiram em frente.»
(Luísa Schmidt, «Uma mulher de poder» in Expresso, 24/12/94.)