quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Sete vigílias

Mortos: - hoje vocês
Que dizem? Tantas horas sobrepostas
No tempo desta noite! - Duas, três...
Caídas, como coisas a meus pés
- Melhor: como perguntas sem respostas.

Ó mortos, (desculpai-me a ignorância!)
- O vosso tempo não é isto, não?
Se há horas, lá na vossa estância,
Não têm esta vazia ressonância,
Devem soar como um perdão.

Eu nada sei! De mim, tão pouco
É, que pareço o cábula d'outrora
Perante as leis do Código. Nem louco,
Nem homem de juízo. Choco,
Só sei que o tempo me deteriora.

Quanto ao grito que eu tinha para dar
(Esse tal grito meu, tão diferente),
Não chegou a sair, nem voltou a entrar.
Ficou aqui... - É esta falta d'ar
Que o meu espírito sente.

Contudo, em minha vida há paz e graça.
A noite é que a perturba e transfigura:
Põe no ar um mistério que esvoaça
E gera em tudo quanto eu diga, ou faça,
Sinais de morte, acenos de loucura.

E quando o sono tarda (tal e qual
A tão sonhada amada que não vem)
Então, a noite é sobrenatural
Coisa que pousa como num beiral
Que a minh'alma tivesse - que ela tem...

E nela se debruça. E analisa
O que nela se passa - fria, tendo
O ambíguo sorrir da Mona Lisa.
E tudo quanto me sensibiliza,
Fica gelado e horrendo.

Ah! quem me dera o sono dos mendigos,
Já recolhida a derradeira esmola!
Dos soldados, passados os perigos -
Ou dos meninos, quando os inimigos
Vão, de manhã, chamá-los para a escola!

Carlos Queiroz, Epístola aos Vindouros e Outros Poemas,
Lisboa, Edições Ática, 1989

Desenho de Eduardo Malta