domingo, 12 de outubro de 2008

Desesperânsia

esta noite vou deitar-me no mesmo drama de ontem
em viscosos lençóis de acusação
demora aquecer os pés nas dobras do remorso
e ver as estrelas lancinantes no filme da janela
a ensinar-me o rodopio do globo
e a culpar-me de o ter deixado
nesse giro inelutável
sem nada ter feito para o travar

uma vez mais a terra idolatrou o sol
e eu não fui capaz de a deslocar
ou tresloucar

e tu estrela da manhã
regressas num renovo sempre igual
sempre núncia das horas inclementes
que uma a uma já estão a despenhar-se

e para relembrar essa hecatombe
ecoa tic tac esta obsessão
de ponteiros em círculos viciados
como animais às voltas numa arena
ou girando atrelados numa nora

ah os deuses corromperam todos os relógios
fizeram de mim um caminhante trôpego e rasteiro
sempre colado a um íman centrípeto
e fizeram da vida esta obediência torpe
de asas arremedando o voo livre e sem limites
de inócuas ondas bajulando a terra
de horizontes cortados pelo mesmo gume déspota
de palpitações e anseios eternamente estrangulados

para algo ter
na mão tenho outra mão que nada tem
na mesma cama no mesmo drama
esmago os vermes da ansiedade que foi minha
larvas de sonhos calcificados
todos os fósseis da utopia
prende-se-me aos olhos este pó de lagarta
argueiro arguto irmão da insónia
e abraço esta amante que me tolhe o fôlego
angústia angústia angústia
a que tão longa convivência
me faz chamar desesperânsia

Anthero Monteiro, Desesperânsia, V. N. Gaia. Corpos Editora, 2003