segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Ó noite, porque hás-de vir sempre molhada!


Ó noite, porque hás-de vir sempre molhada!

Porque não vens de olhos enxutos

e não despes as mãos

de mágoas e de lutos!


Porque hás-de vir semimorta,

com ar macerado e de bruxedo,

e não despes os ritos, o cansaço,

e as lágrimas e os mitos e o medo!


Porque não vens natural

Como um corpo sadio que se entrega,

e não destranças os cabelos,

e não nimbas de luz a tua treva!


Porque hás-de vir com a cor da morte -

se a morte já temos nós!

Porque adormeces os gestos,

porque entristeces os versos,

e nos quebras os membros e a voz!


Porque é que vens adorada

por uma longa procissão de velas,

se eu estou à tua espera em cada estrada,

nu, inteiramente nu,

sem mistérios, sem luas e sem estrelas!


Ó noite eterna e velada,

senhora da tristeza, sê alegria!

Vem de outra maneira ou vai-te embora,

e deixa romper o dia!


Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos, 1948