sábado, 18 de outubro de 2008

O firmamento



Glória a Deus! Eis aberto o livro imenso,
O livro do infinito,
Onde em mil letras de fulgor intenso
Seu nome adoro escrito.
Eis do seu tabernáculo corrida
Uma ponta do véu misterioso:
Desprende as asas, retomando a vida,
Alma que anseias pelo eterno gozo!

Estrelas, que brilhais nessas moradas,
Quais são os vossos destinos?
Vós sois, vós sois as lâmpadas sagradas
De seus umbrais divinos.
Pululando do selo omnipotente,
E sumidas por fim na eternidade,
Sois as faíscas do seu carro ardente
A rolar através da imensidade.

E cada qual de vós um astro encerra,
Um sol que apenas vejo,
Monarca d'outros mundos como a terra
Que formam seu cortejo.
Ninguém pode contar-vos: quem pudera
Esses mundos contar a que dais vida,
Escuros para nós qual nossa esfera
Vos é nas trevas da amplidão sumida?

Mas vós perto brilhais, no fundo acesas
Do trono soberano:
Quem vos há-de seguir nas profundezas
Desse infinito oceano?
E quem há-de contar-vos nessas plagas
Que os céus ostentam de brilhante alvura,
Lá onde sua mão sustém as vagas
Dos sóis que um dia romperão na altura?

E tudo outrora na mudez jazia,
Nos véus do frio nada:
Reinava a noite escura; a luz do dia
Era em Deus concentrada.
Ele falou! e as sombras num momento
Se dissiparam na amplidão distante!
Ele falou! e o vasto firmamento
Seu véu de mundos desfraldou ovante!

E tudo despertou, e tudo gira
Imerso em seus fulgores;
E cada mundo é sonorosa lira
Cantando os seus louvores.
Cantai, ó mundos que seu braço impele,
Harpas da criação, fachos do dia,
Cantai louvor universal Àquele,
Que vos sustenta e nos espaços guia!

Terra, globo que geras nas entranhas
Meu ser, o ser humano,
Que és tu com teus vulcões, tuas montanhas,
E com teu vasto oceano?
Tu és um grão d'areia arrebatado
Por esse imenso turbilhão dos mundos
Em volta de seu trono levantado
Do universo nos seios mais profundos.

E tu, homem, que és tu, ente mesquinho,
Quando soberbo te elevas,
Buscando sem cessar abrir caminho
Por tuas densas trevas!
Que és tu com teus impérios e colossos?
Um átomo sutil, um froixo alento:
Tu vives um instante, e de teus ossos
Só restam cinzas, que sacode o vento.

Mas ah! tu pensas, e o girar dos orbes
À razão encadeias;
Tu pensas, e inspirado em Deus te absorves
Na chama das ideias:
Alegra-te, imortal, que esse alto lume
Não morre em trevas dum jazigo escasso!
Glória a Deus, que num átomo resume
O pensamento que transcende o espaço!

Caminha, ó rei da terra! se inda és pobre
Conquista áureo destino,
E de século em século mais nobre
Eleva a Deus teu hino!
E tu, ó terra, nos floridos mantos
Abriga os filhos que em teu seio geras,
E teu canto d'amor reúne aos cantos
Que a Deus se elevam de milhões d'esferas!

Dizem que já sem forças, moribunda,
Tu vergas decadente:
Oh! não, de tanto Sol que te circunda
Teu Sol inda é fulgente.
Tu és jovem ainda: a cada passo
Tu assistes dum mundo às agonias,
E rolas entretanto nesse espaço
Coberta de perfumes e harmonias.

Mas ai! tu findarás! além cintila
Hoje um astro brilhante;
Amanhã ei-lo treme, ei-lo vacila,
E fenece arquejante:
Quem foi? quem o apagou? foi seu alento
Que extinguiu essa luz já fatigada;
Foram séculos mil, foi um momento
Que a eternidade fez volver ao nada.

Um dia, quem o sabe? um dia ao peso
Dos anos e ruínas,
Tu cairás nesse vulcão aceso
Que teu sol denominas;
E teus irmãos também, esses planetas
Que a mesma vida, a mesma luz inflama,
Atraídos enfim, quais borboletas,
Cairão como tu na mesma chama!

Então, ó Sol, então nesse áureo trono,
Que farás tu ainda,
Monarca solitário, e em abandono,
Com tua glória finda?
Tu findarás também, a fria morte
Alcançará teu carro chamejante:
Ela te segue, e profetiza a sorte
Nessas manchas que toldam teu semblante.

Que são elas? talvez os restos frios
D'algum antigo mundo,
Que inda referve em borbotões sombrios
No teu seio profundo.
Talvez, envolto pouco e pouco a frente
Nas cinzas sepulcrais de cada filho,
Debaixo deles todos de repente
Apagarás teu vacilante brilho.

E as sombras passarão no vasto império
Que teu facho alumia;
Mas que vale de menos um saltério
Dos orbes na harmonia?
Outro sol como tu, outras esferas
Virão no espaço descantar seu hino,
Renovando nos sítios onde imperas
Do sol dos sóis o resplendor divino.

Glória a seu nome! Um dia meditando
Outro céu mais perfeito,
O céu d'agora a seu altivo mando
Talvez caia desfeito.
Então mundos, estrelas, sóis brilhantes,
Qual bando d’águias na amplidão disperso,
Chocando-se em destroços fumegantes,
Desabarão no fundo do universo.

Então a vida, refluindo ao seio
Do foco soberano,
Parará, concentrando-se no meio
Desse infinito oceano;
E, acabado por fim quanto fulgura,
Apenas restarão na imensidade —
O silêncio, aguardando a voz futura,
O trono de Jeová, e a eternidade!
****
Soares de Passos, Poesias,
Porto, Livraria Chardron de Lello & Irmão - Editores, 1984
Foto in blog.uncovering.org
---------------
Este é, sem dúvida, o poema mais belo do romântico Soares de Passos, que o escreveu de algum modo inspirado no Sistema do Mundo de Laplace. Nasceu no Porto a 27 de Novembro de 1826. Diante da sua casa, na Praça Nova, foram erigidas pelos miguelistas, três anos depois, duas forcas onde pereceram, executados, nove liberais. De 1840 a 1845, trabalha ao balcão da drogaria do pai e faz a escrituração da casa.. Entretanto, frequenta aulas de latim e de filosofia elementar e matricula-se, em 1849, na Faculdade de Direito de Coimbra, onde, dois anos volvidos, colabora no jornal de versos Novo Trovador. Colabora, mais tarde, no jornal O Bardo, do Porto, onde publica alguns dos seus mais conhecidos poemas, como a balada do «Noivado do Sepulcro», que viria a tornar-se uma canção popular muito vulgarizada. A publicação do livro Poesias mereceu os melhores encómios de Herculano, que o considerou o sucessor de Garrett.
Sofrendo de tuberculose, tal como acontecia com o seu amigo Júlio Dinis, foi acometido, nos inícios de 1860, por vária hemoptises, acabando por morrer a 8 de Fevereiro, com 33 anos.