JOÃO AREZES
por
Amílcar Mendes
Deslinda-se desde logo na obra de Anthero Monteiro um caudal
de escrita poética de cariz misto, em termos de conteúdo temático, algo entre o
ficcionado e o real autobiográfico. O autor parece querer, por um lado devorar
a memória de algumas cicatrizes que emergem, pretende de algum modo
exorcizá-las e pôr em evidência aquilo que está bem tracejado na mente,
enquanto coisa positiva.
O regresso à infância está bem patente, sobretudo nas
primeiras páginas. Há como que um cordão umbilical do pensamento a convocar o
autor até à mais tenra idade, disso faz prova o poema “os primeiros passos”, um
quadro de visão imagética que questiona, sem deixar de o aceitar, um certo
misticismo e é até possível vislumbrar um namoro ao conceito de Alegoria da
Caverna, o mistério da vida possibilita estas divagações. Um poema de todo em
todo fotográfico, num certo preto e branco que sorri.
Em “104 palmatoadas” há toda uma descrição de ambiência
escolar punitiva para com os alunos, paradigma e apanágio do Antigo Regime. O
autor, face a uma notável vocação para as lides das letras, superiorizava-se
aos demais colegas nos ditados e é, consequentemente e a contragosto, investido
da condição de carrasco no castigo aos que mais erros davam. Em vez de um
machado, ao algoz era fornecida uma régua, instrumento com o qual se mediam os
erros ortográficos dos outros, numa estatística de contabilidade dolorosa.
Escusado será dizer com o que contava o autor no exterior do estabelecimento de
ensino.
A esta jornada vivencial convertida em obra poética soma-se a
chegada do seu primeiro grande amor. A primeira dona do “ás de copas” do autor
foi “benilde”. (…) Conheceu-a na festa de
agosto, passeou com ela de mãos dadas, o olhar obcecado pela luz que irradiava
aquele rosto mais grácil e doce do que o da santa do andor.
Os amores precoces são voláteis na duração, mas perduram na
memória para todo-o-sempre. Aos 9 anos de idade a desilusão tem mais ênfase que
a consciência. O resultado de um amor não correspondido degenera num pedido
para ir estudar para padre.
E a exorcização do mal passa das reguadas com que brindava os
outros na sala de aula para o chicote com que era tatuado maternalmente quando
se portava mal, falamos de “diavolo in corpo”.
“a besta” é um exercício de quem não perdoa e não esquece um
período negro no seminário. Reporta-se à figura de um diretor cuja fotografia
neuronal tirada pelo autor, é verdadeiramente e na essência um momento Kodak:
para mais tarde recordar.
Quem há de esquecer se
a recordação se sobrepõe ao ódio e é um ferrete indelével na pele do escravo.
Basta lembrar um claustro, a capela ou a sala do capítulo daquela casa para
logo perceber como ela ficou para sempre assombrada pela figura voluminosa do
diretor.
“o meu ribeirinho” é uma recordação lamentada e
simultaneamente conformada, preenchida de um valor telúrico de outros tempos
vividos e da clivagem que se opera face às mudanças entretanto ocorridas. Há uma
boa dose de nostalgia e aqui se releva o papel recorrente da memória, porque só
ela consegue dar vida às coisas que já desapareceram.
No caso de “um domingo e muitos mais” trata-se de um poema
seminal da obra, pleno de candura, a evocar o romance que o une à sua
companheira de há meio século. Por conseguinte, as páginas 36 e 37 são um
sublinhado estético do quanto uma história de amor se renova numa declaração
contínua a esse mesmo sentimento e acabam por tornar o poema num imperativo de
leitura.
“a confissão” é um relato de quem inocentemente espera uma
redenção suave e sofre uma sentença inesperadamente castigadora. De algum modo,
o autor tributa-a como inversamente pedagógica para o penitente: E foi remédio sacrossanto, emendei-me para
sempre, nunca mais disse a verdade.
Logo a seguir surge o episódio poético que dá pelo nome de “páscoa”,
moldado em lembranças, deambula entre o religioso temático e o paganismo de
situação. Irónico, mas nostálgico, pois enquanto criança não se questiona a
validade das asserções: Como era bom
acreditar sem nada questionar. Os olhos outra vez surpresos por tudo se repetir
cada ano (…).
“questão de espaço” remete para o ateísmo do autor, segundo
ele “Deus tem, reconheço, uma enorme vantagem, existe em toda a parte mas não
ocupa espaço nenhum”.
“fatal esquecimento”, “luto” e “alzheimer” e “cadeira de rodas”
que enquadram a doença e a morte e dissertam sobre a perda dos nossos entes
queridos. São uma espécie de pontos de paragem, sendo também pontos de passagem
existencial dos outros que marcam as nossas vidas.
Por outro lado, “o promontório” é o país das glórias passadas
a fazer uma análise introspetiva, a conjugar-se no pretérito, mas também no
presente do indicativo. A antítese entre a História grande da nação versus a
memória curta dos que a habitam.
“obrigado sou feliz” é outro dos poemas essenciais da obra, impregnado
de ironia ácida, faz-se compreender pela razão inversa entre a palavra e o
propósito. Uma espécie de drama cómico situacional, essa relação de
tragicomédia em que todos estão dispostos a ajudar e a fazer com que sejamos
felizes…deixando-nos nas cordas! Dir-se-ia que é um poema de final infeliz, mas
com humor conclusivo bem recortado.
“olvido” estabelece o contraponto entre a memória e o
esquecimento. Na incidência de conteúdo prevalece o esquecimento, mas o que é o
esquecimento senão a ausência de memória? Este esquecimento que reside no poema
é personificado por Olívio que assume a alcunha de Olvido.
“um poeta amnésico” poderia denominar-se por “poema do medo
de perder a memória” e “poema do homem sentado” bem poderia ser uma peça de
Beckett ao jeito de “À Espera de Godot”. “notas para um epitáfio” e “últimas palavras”
são uma antevisão parodiada da morte.
Como rodapé deve dizer-se que “Sulcos da Memória e do
Esquecimento” tem um desenho poético-literário bem alicerçado, rico em
sugestões metafóricas que auxiliam à assimilação da obra. Embarcamos num navio
da memória, que tenta sulcar as ondas de esquecimento: a saudade, a tristeza,
as injustiças e uma certa impotência em lutar contra Kronos, o eterno vencedor.
Conquanto que as boas recordações de infância, adolescência e idade adulta
sejam enfatizadas com sábias doses de ironia e sátira, há também alegria e
humor. Mas sobretudo subsiste um virtuosismo de escrita que conferem à obra o
elã de criar o apetite para a fruição de uma boa dose de nutrição poética.
João Fernando Arezes (jornalista)