terça-feira, 6 de maio de 2014

Testemunho – Contributo para a apresentação da obra “Sulcos da Memória e do Esquecimento”, de Anthero Monteiro







JOÃO AREZES 
por
Amílcar Mendes





Deslinda-se desde logo na obra de Anthero Monteiro um caudal de escrita poética de cariz misto, em termos de conteúdo temático, algo entre o ficcionado e o real autobiográfico. O autor parece querer, por um lado devorar a memória de algumas cicatrizes que emergem, pretende de algum modo exorcizá-las e pôr em evidência aquilo que está bem tracejado na mente, enquanto coisa positiva. 

O regresso à infância está bem patente, sobretudo nas primeiras páginas. Há como que um cordão umbilical do pensamento a convocar o autor até à mais tenra idade, disso faz prova o poema “os primeiros passos”, um quadro de visão imagética que questiona, sem deixar de o aceitar, um certo misticismo e é até possível vislumbrar um namoro ao conceito de Alegoria da Caverna, o mistério da vida possibilita estas divagações. Um poema de todo em todo fotográfico, num certo preto e branco que sorri.

Em “104 palmatoadas” há toda uma descrição de ambiência escolar punitiva para com os alunos, paradigma e apanágio do Antigo Regime. O autor, face a uma notável vocação para as lides das letras, superiorizava-se aos demais colegas nos ditados e é, consequentemente e a contragosto, investido da condição de carrasco no castigo aos que mais erros davam. Em vez de um machado, ao algoz era fornecida uma régua, instrumento com o qual se mediam os erros ortográficos dos outros, numa estatística de contabilidade dolorosa. Escusado será dizer com o que contava o autor no exterior do estabelecimento de ensino.

A esta jornada vivencial convertida em obra poética soma-se a chegada do seu primeiro grande amor. A primeira dona do “ás de copas” do autor foi “benilde”. (…) Conheceu-a na festa de agosto, passeou com ela de mãos dadas, o olhar obcecado pela luz que irradiava aquele rosto mais grácil e doce do que o da santa do andor.

Os amores precoces são voláteis na duração, mas perduram na memória para todo-o-sempre. Aos 9 anos de idade a desilusão tem mais ênfase que a consciência. O resultado de um amor não correspondido degenera num pedido para ir estudar para padre.

E a exorcização do mal passa das reguadas com que brindava os outros na sala de aula para o chicote com que era tatuado maternalmente quando se portava mal, falamos de “diavolo in corpo”.

“a besta” é um exercício de quem não perdoa e não esquece um período negro no seminário. Reporta-se à figura de um diretor cuja fotografia neuronal tirada pelo autor, é verdadeiramente e na essência um momento Kodak: para mais tarde recordar.

Quem há de esquecer se a recordação se sobrepõe ao ódio e é um ferrete indelével na pele do escravo. Basta lembrar um claustro, a capela ou a sala do capítulo daquela casa para logo perceber como ela ficou para sempre assombrada pela figura voluminosa do diretor.
“o meu ribeirinho” é uma recordação lamentada e simultaneamente conformada, preenchida de um valor telúrico de outros tempos vividos e da clivagem que se opera face às mudanças entretanto ocorridas. Há uma boa dose de nostalgia e aqui se releva o papel recorrente da memória, porque só ela consegue dar vida às coisas que já desapareceram.

No caso de “um domingo e muitos mais” trata-se de um poema seminal da obra, pleno de candura, a evocar o romance que o une à sua companheira de há meio século. Por conseguinte, as páginas 36 e 37 são um sublinhado estético do quanto uma história de amor se renova numa declaração contínua a esse mesmo sentimento e acabam por tornar o poema num imperativo de leitura.

“a confissão” é um relato de quem inocentemente espera uma redenção suave e sofre uma sentença inesperadamente castigadora. De algum modo, o autor tributa-a como inversamente pedagógica para o penitente: E foi remédio sacrossanto, emendei-me para sempre, nunca mais disse a verdade.
Logo a seguir surge o episódio poético que dá pelo nome de “páscoa”, moldado em lembranças, deambula entre o religioso temático e o paganismo de situação. Irónico, mas nostálgico, pois enquanto criança não se questiona a validade das asserções: Como era bom acreditar sem nada questionar. Os olhos outra vez surpresos por tudo se repetir cada ano (…).

“questão de espaço” remete para o ateísmo do autor, segundo ele “Deus tem, reconheço, uma enorme vantagem, existe em toda a parte mas não ocupa espaço nenhum”.

“fatal esquecimento”, “luto” e “alzheimer” e “cadeira de rodas” que enquadram a doença e a morte e dissertam sobre a perda dos nossos entes queridos. São uma espécie de pontos de paragem, sendo também pontos de passagem existencial dos outros que marcam as nossas vidas.

Por outro lado, “o promontório” é o país das glórias passadas a fazer uma análise introspetiva, a conjugar-se no pretérito, mas também no presente do indicativo. A antítese entre a História grande da nação versus a memória curta dos que a habitam.
“obrigado sou feliz” é outro dos poemas essenciais da obra, impregnado de ironia ácida, faz-se compreender pela razão inversa entre a palavra e o propósito. Uma espécie de drama cómico situacional, essa relação de tragicomédia em que todos estão dispostos a ajudar e a fazer com que sejamos felizes…deixando-nos nas cordas! Dir-se-ia que é um poema de final infeliz, mas com humor conclusivo bem recortado.

“olvido” estabelece o contraponto entre a memória e o esquecimento. Na incidência de conteúdo prevalece o esquecimento, mas o que é o esquecimento senão a ausência de memória? Este esquecimento que reside no poema é personificado por Olívio que assume a alcunha de Olvido.

“um poeta amnésico” poderia denominar-se por “poema do medo de perder a memória” e “poema do homem sentado” bem poderia ser uma peça de Beckett ao jeito de “À Espera de Godot”. “notas para um epitáfio” e “últimas palavras” são uma antevisão parodiada da morte.

Como rodapé deve dizer-se que “Sulcos da Memória e do Esquecimento” tem um desenho poético-literário bem alicerçado, rico em sugestões metafóricas que auxiliam à assimilação da obra. Embarcamos num navio da memória, que tenta sulcar as ondas de esquecimento: a saudade, a tristeza, as injustiças e uma certa impotência em lutar contra Kronos, o eterno vencedor. Conquanto que as boas recordações de infância, adolescência e idade adulta sejam enfatizadas com sábias doses de ironia e sátira, há também alegria e humor. Mas sobretudo subsiste um virtuosismo de escrita que conferem à obra o elã de criar o apetite para a fruição de uma boa dose de nutrição poética.


João Fernando Arezes (jornalista)