quarta-feira, 20 de abril de 2011

Páscoa





depois do beijo de judas
e depois da humilhação e morte no cimo do calvário
e depos da revolta dos céus para onde apontava a cruz
com os trovões solidários com o estrebuchar da terra
onde o madeiro se firmava
e depois da pedra rolada do túmulo de nicodemus
o ressuscitado aparecia em nossas casas
muito antes do terceiro dia
inexplicavelmente ainda pregado numa cruz

o séquito fazia-se anunciar ao badalar de uma campainha
que tinha o condão de fazer fervilhar toda a rua
e trazer para as portas a excitação da petizada
e daqueles a quem a fé transformava em meninos

manhã cedo já minha mãe cortara algumas folhas
de hidrângeas e de japoneira
pois a senha de entrada em cada casa
eram os verdes dispersos à porta dos crentes
receptivos à bênção do miraculado

a mesa da sala ordinariamente à míngua
ressuscitava também nesse dia
para ser farta como nunca
e oferecer-se à gula dos olhos
ajoujada de amêndoas confeitos e outras guloseimas

toda a amargura dos dias se revestia então
de uma capa espessa de açúcar
sublinhada depois nas bocas por um travo de porto

fazia-se uma roda em volta da mesa
e aos circunstantes era dado o ensejo
de irem sarando com beijos o sítio do cravo
que trespassara os pés do ressuscitado

minha mãe desencantava uma pequena moeda
para saciar a boca do bornal que trazia consigo
o fatal sucessor de judas que há em cada paróquia
e logo em seguida toda a comitiva do compasso
debandava em roldão pelas escadas abaixo
enquanto a campainha anunciava à vizinhança
que o ritual se iria repetir na casa seguinte

como era bom acreditar sem nada questionar
os olhos outra vez surpresos por tudo se repetir cada ano
a traição a negação de Pedro a debandada dos apóstolos
o sacrifício a longa narrativa da paixão
a via sacra com uma estação a mais
no dizer do faceto senhor fonseca
(décima quinta estação: verónica casa com o cireneu)
a inevitável ressurreição apenas concedida aos deuses
a visita pascal com o abade e os homens do cortejo
de rostos rubicundos e de passos cada vez mais titubeantes
a final reunião dos crentes no templo a rebentar
de aleluias arremessadas ao alto das naves
enquanto lá fora os andorinhões
tão crentes quanto os demais
juntavam o seu alarido
à celebração da sonhada vitória
de todos os mortais sobre a morte implacável

Anthero Monteiro, Sete Vezes Sete Nuvens, Porto, Corpos Editora, 2011