sábado, 26 de dezembro de 2009

Tenho horror a hospitais...














Tenho horror a hospitais – os frios corredores, as salas de espera, ante-salas da morte – mais ainda a cemitérios onde as flores perdem o viço; não há flor bonita em campo santo!

Possuo, no entanto, um cemitério meu, pessoal, eu o construí e inaugurei há alguns anos, quando a vida me amadureceu de sentimento. Nele enterro aqueles que matei, ou seja, aqueles que para mim deixaram de existir, morreram, os que um dia tiveram a minha estima e a perderam.

Quando um tipo vai além de todas as medidas e, de facto, me ofende, já com ele não me aborreço, não fico enojado ou furioso, não brigo, não corto relações, não lhe nego o cumprimento. Enterro-o na vala comum de meu cemitério – nele não existem jazigos de família, túmulos individuais; os mortos jazem em cova rasa, na promiscuidade da salafrice, do mau carácter. Para mim, o fulano morreu, foi enterrado, faça o que faça já não pode me magoar.

Raros enterros – ainda bem! – de um pérfido, de um perjuro, de um desleal, de alguém que faltou à amizade, traiu o amor, foi por demais interesseiro, falso, hipócrita, arrogante – a impostura e a presunção me ofendem fácil. No pequeno e feio cemitério, sem flores, sem lágrimas, sem um pingo de saudade, apodrecem uns tantos sujeitos, umas poucas mulheres, uns e outras varri da memória, retirei da vida.

Encontro na rua um desses fantasmas, paro a conversar, escuto, correspondo às frases, às saudações, aos elogios, aceito o abraço, o beijo fraterno de Judas. Sigo adiante, o tipo pensa que mais uma vez me enganou, mal sabe ele que está morto e enterrado.

Jorge Amado, in ‘Navegação de Cabotagem – apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei’