quarta-feira, 3 de abril de 2013

desculpa centopeia




desculpa centopeia    era talvez suficiente
calcar-te apenas uma pata  para deixares a parede
onde não ficas bem como obra de arte
mas à razão manietada pelo medo
só lhe resta o recurso à extrema violência

envolve-se num papel a massa informe
de um corpo todo patas todo fuga
e desapareces no gesto de puxar o autoclismo
desapareces mas não a marca da repulsa
no papel de parede não o eco crepitante
da quitina esmagada não o fantasma multípede
que espreita em cada recanto húmido da vida

desculpa centopeia e vê lá se me entendes
era eu inocência e tu malignidade
era eu indefeso e tu eras a insídia
era eu vida borbotando e tu o malefício
a morte subreptícia ameaçando
as defesas do crânio no sono escancaradas

assim me ensinaram as mulheres da casa
para quem eras o maior dos sobressaltos
rapidamente a vítima da vassoura do chinelo
de outro qualquer expediente do arsenal doméstico
de nada vale agora saber do equilíbrio
necessário aos ecossistemas

certo dia e já adolescente ou tu ou uma irmã
miriápode das tuas de súbito irrompeu
do meio do meu  livro de francês
um salto da carteira um grito angustiado
olhou-me a turma atónita sem nada compreender
mas logo o professor o padre rubicundo
desencadeia ali um turbilhão de riso
as-tu peur d’un mille-pattes mon bébé

foi a noite completa a revolutear no leito
e aquela frase às voltas na cabeça
as-tu peur d’un mille-pattes mon bébé
e o eco da chacota e outra vez a frase
outro bicho com patas correndo no meu corpo
as tu peur d’un mille-pattes mon bébé

prometi a mim mesmo que o escárnio
não ficaria impune e a vingança terrível chegaria
no habitual passeio de domingo
um pequeno empurrão e um precipício
nos montes da falperra era o bastante

desculpa centopeia não ter sido capaz
era um tonel repleto de peçonha
e injusto é recair em ti a represália
lá porque tens mil patas cem ou trinta
e aquela exígua fábrica de veneno
no primeiro segmento do teu corpo

pardon pardon mille-pattes

Anthero Monteiro