segunda-feira, 1 de abril de 2013

a cadeira de rodas













vamos mãezinha eu empurro a cadeira
de rodas vamos fazer uma longa viagem
até à varanda que dá para nascente
o sol já lá canta para saudar-te e um verdilhão
virá perguntar-te onde tens andado lá do cimo
da grande japoneira debruçada sobra o tanque

(já não se lembra decerto do nome da passarada
que pululava no quintal e que me ensinou a distinguir
verdilhões pintassilgos  carriças chascos  cerezinas
cucos  andorinhas e lavandiscas sagradas
já nada lhe diz a história da japoneira secular
onde se reúnem em concílio as pombas e os pardais)

olha vai ali mãezinha a filha do antigo sapateiro
que já morreu há tantos anos ainda te lembras
de que a oficina era ali do outro lado da rua
será que ainda sabes o nome de alguns dos utensílios
que o pai dela usava para te fazer ou arranjar o calçado
coser as gáspeas bater as solas pregar os tacões

(dentro dela entrou o simum e espalhou um deserto
o silêncio habita quase sempre este corpo inexpressivo
sabe lá do senhor angelino sapateiro ou da sua bancada
e ela outrora sabia e mostrava-me na oficina a turquês
o tripé de formas os ferros de bornir o martelo
e a pedra de bater sola a lixa a grosa e a sovela)

pronto não queres apanhar sol a luz incomoda-te
vamos para dentro vais ficar ali diante da tv
pode ser que te distraias um pouco aprendas
algo ainda e te mantenhas acordada
ou te acudam à memória algumas lembranças
ou algum sorriso te aqueça um pouco a alma

(vou ter é de acender o aquecedor a que ela chama
a caixa de fogo e esta outra caixa da televisão
não é mais do que uma janela para o quintal
se vê uma tourada avisa-me que anda um touro
lá fora tem cuidado se vê um filme de guerra
o campo de batalha é logo ali debaixo do limoeiro)

não por favor não vais adormecer outra vez
espera um pouco apenas vou trazer-te
cevada e um pão com geleia ontem gostaste
ah queres que chegue um pouco para trás
a cadeira de rodas sim é uma cadeira de rodas
isto mãezinha não se chama uma carreta

(ontem reencontrou por acaso a palavra geleia
que deve ter adoçado um pouco a sua infância
mas a minha mãe já morreu aliás matou-me repetidamente
depois de me ressuscitar por momentos com a palavra filho
está morta por antecipação e quando chama carreta
à cadeira de rodas está só a dizer-me a minha pobre mãe

que só falta ir-se embora na carreta funerária)

Anthero Monteiro