
Sonhei com um homem que vivia amarrado a um estrado.
Era um homem bom. As pessoas que passavam davam-lhe de comer.
O estrado, que lembrava uma padiola, era transportado de cidade em cidade.
O homem, todo envolto nos panos e cordas que o ligavam ao estrado, estava na posição de sentado, com as pernas cruzadas e os braços estendidos.
Os panos que o envolviam eram muito escuros e todo o corpo estava apertado nas cordas grossas.

Tive esta noite um sonho de infância.
Sonhei que era perseguido. Um sonho de insegurança.
Estava num salão onde havia uma grande porta, muito alta, toda chapeada a ferro e pintada com zarcão.
Eu estava do lado direito da porta, contrário à abertura.
Num momento vejo a porta a abrir-se muito devagar. Logo a seguir começa a aparecer uma garra preta com a forma de um neurónio, arrastando-se pela abertura da porta.
Aflito, solto um grito contido e sufocado.
Eu próprio ouvi este grito.
Acordo ansioso.
Fernando Lanhas, in Sonhos
Nasceu no Porto em 16 de Setembro de 1923. É uma espécie de Leonardo Da Vinci português: arquitecto (ESBAP, 1947), pintor, desenhador, escultor, poeta, director do Museu de Etnografia e História do Porto, investigador, inventor (inventou o "fotalto" para fotografar objectos do alto), arqueólogo, astrónomo, coleccionador. Pioneiro no nosso país do abstraccionismo geométrico (assina em 1944 o primeiro quadro abstracto pintado em Portugal), revela, desde sempre, curiosidade por tudo o que o cerca e pelos fenómenos da vida (aos seis anos dedica-se a observar formigas com uma lupa), do espaço (aos dez anos assiste a uma "chuva de estrelas") e do subconsciente (regista e desenha os seus sonhos desde muito cedo).
Embora não se trate de poesia, mas de pequenos relatos e registos gráficos, aqui ficam dois exemplos dessas vivências do subsconsciente de Fernnado Lanhas, que afirmou algures: "Sonhamos o que sabemos". Ao integrá-los na sua obra, o artista terá pretendido afirmar que esta não é independente daquele e que importa conhecer o homem todo, até o seu lado mais nocturno, para um maior entendimento da criação e do criador.
Fernando Lanhas será, possivelmente, o convidado especial da próxima sessão das Quartas Mal Ditas (o Coordenador promete diligenciar nesse sentido), as quais abordarão, tal como fizemos este mês, na Praça da Poesia, o tema "Pelo Sonho é que Vamos", que encerramos com este post.