segunda-feira, 5 de abril de 2010

visto da margem sul do rio o porto








Foto A.M.







visto da margem sul do rio o porto não explode

sob a tarde de verão, a água reflecte

renques de casario humilde a encastelar-se

irregular em ocres e granito, manchas, vãos, recatos.

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é quando os jacarandás se fazem desse azul mais surdo

do anoitecer e concentram uma ameaça do tempo

contida nas cores tensas das fachadas, a entrecortar

os jardins do crepúsculo aprendidos de cor.

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além umas arcadas, um cais, o traço grosso a carvão

dos encaixes da ponte armada em ferro, a muralha,

o deslizar da luz para poente, tudo

uma dramática placidez escurecendo a ribeira, um vidrado

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de presenças esquecidas, palhetas de ouro fosco, sobre as barcaças

abandonadas, quase ao alcance da mão, da voz, da alma, é quando

a música há-de vir, lentamente elaborada na memória,

como um sopro da infância e do indizível do mundo.

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são estes sons de nada, estes voos que perpassam,

estas estrias da sombra de ninguém

sobre o curso do rio, como nuvens para esta hora, a

encrespar-lhe de leve a superfície.

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enquanto parte algum comboio atrasado,

um avião se esvai ao longe, os escritórios fecham,

quero um barco pequeno para a minha travessia,

para a minha chegada e para a minha partida,

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para andar entre as margens ou seguir a corrente

até s. joão da foz ver as últimas gaivotas

ainda antes da noite, respirar um não sei quê que se desprende

da travessia, a atravessar-me,

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halo vindo das camélias, perfume de penumbras

de mulher, ou para sempre e para nunca mais

um pó da lua na cantareira e na afurada

devagar a acender-se mais rente ao coração.

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Vasco da Graça Moura, Poesias 1997/2000,

Lisboa, Círculo de Leitores