sábado, 12 de março de 2011
Com uma mala na mão
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Foto A.M.
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-Viajar de comboio como na infância.
As árvores e os rios desfilam; nas casas,
por detrás das janelas fechadas, respiram em silêncio
homens e mulheres, crianças que nunca conheceremos.
Lá à frente, ao meio do corredor,
uma senhora de idade conta a um rapaz de bigode
histórias de netos e de filhos e da aldeia
de onde vem. Tão bem vestida. Velhice feliz.
E ele de nariz no ar, quase distraído.
Fala tão alto que durante alguns minutos
é como se fizéssemos nós também parte da família.
Uma rapariga loira lê, de vez em quando
olha pela janela. Atrás de mim
um tipo elegante, de fato cinzento, folheia uma revista.
Um dia nós todos e o comboio que nos leva
teremos chegado ao nosso destino: não haverá
regresso a preparar, mais malas a arrumar, preocupações
a ter com quem está à nossa espera.
Mas por enquanto viajamos, olhamos uns para os outros,
surpreendidos. Há pouco tempo ainda
nem sequer nos conhecíamos. E a rapariga loira
não podia suspeitar da nossa existência.
Se se pudesse entrar na vida das pessoas
que se encontram no comboio como se entra
pela carruagem com a mala pesada na mão.
O homem que acariciava a revista levanta-se,
vejo-o passar. Pede lume à rapariga loira.
Mas ela lê. Ele fixa-a com obsessão,
ia sentar-se no lugar vazio
ao lado dela. Depois hesita, agradece,
e volta ao seu lugar atrás de mim.
Acendo um cigarro eu também
e não posso impedir-me de sorrir.
O comboio avança rapidamente.
Planícies cobertas de neve surgem no meu olhar.
Árvores esguias limitam o horizonte como um muro.
Fumo o cigarro, leio um livro, olho para o tecto.
Depois admiro distraidamente as cores do outono
nas árvores e arbustos da floresta que acaba de passar.
Que velocidade. E que silêncio. Os comboios
modernos são tão confortáveis. Nem sequer
nos arrefecem os pés. Sem saber porquê
oiço-me dizer: meu deus, meu deus.
E dou-me conta, sem olhar,
do ruído que fazem as folhas do livro
que a rapariga loira continua a ler.
João Camilo,
A Mala dos Marx Brothers, Lisboa, Caminho, 1988