terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

104 palmatoadas
















a infância das mãos nuas e dos pés descalços
era atravessada pelo longo aguilhão da impiedade
a frialdade e as frieiras eram chacais mordendo
os dedos e os calcanhares  inverno e primavera

a crueldade arrombava-nos a porta
comia à mesa connosco e deitava-se
na nossa cama com o medo do outro lado
pesava mais que os livros no saco de pano
que levávamos à escola via-nos saltar
de pedra em pedra o riacho da aldeia
e entrava na sala munida da cólera
do raio das férulas e dos flagelos

espirrava escaldante dos erros do ditado
da ladainha da tabuada dos cognomes
dos monarcas do rol interminável dos rios
das serras e das estações dos caminhos de ferro
era contínua ameaça no ponteiro de cana
e na palmatória sempre pronta a saltar da gaveta

hoje a lembrança de tudo isso é entretecida de glória
como a palma do martírio de um santo
que foi estraçalhado membro a membro
mas seria bom ter esquecido que me obrigaram
repetidas vezes a exercer violência
sobre os meus iguais pois era ao melhor
no ditado que se incumbia de punir os erros
uma palmatoada por cada desacerto

lá estava o jorge de mão submissa
cão ganindo sem verter uma lágrima
e eu condoído verdugo a zurzi-lo
com cento e quatro unidades de castigo
tantas quantos os seus desvarios ortográficos

a mestra ia perguntando a outros qual o sujeito
da frase o melhor aluno espanca o jorge
e eu aproveitava para apressar o ritmo das reguadas
tão rápidas e suaves quanto o bater das asas
de uma borboleta mas tinham que ser todas
contadas e ela lá ia conferindo o número
de vez em quando impondo-me outra severidade
sob pena de trocar de lugar aquele sujeito
e aquele  complemento direto

a vingança chegava depois lá fora
no recreio sob a bênção das tílias
as vítimas habituais adulteravam-me o nome  
e batiam-me sem comiseração
defendia-me atirando-lhes pedras  
mas tudo fazia para não lhes acertar

e só assim me ia redimindo
pois era errando ainda que voluntariamente
que o melhor aluno ganhava um rosto mais humano

Anthero Monteiro