quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

A besta do diretor










Edvard Munch,
O Grito








o diretor era uma besta
é o que dizem este rancor já cansado
este resquício de raiva inútil
este asco há muito diluído
por meio século de distância
ainda que o ódio segundo balzac
seja mais dotado de memória do que o amor

olho estas mãos e nem elas esquecem
que eram naquele tempo dedinhos de ternura
e que se transformavam num ápice
seviciadas pela fúria  do energúmeno
em manápulas desmedidas que mal cabiam
no vão refrigério dos sovacos

quem há de esquecer a brutalidade
exercida sobre a inocência
o escárnio perante a candura
o ardil para surpreender a falta
o sadismo das punições em série
a adolescência ocupada pela arbitrariedade

quem há de esquecer
que era inútil tentar perceber
o porquê das sanções
o permanente demérito do louvor
do sorriso da indulgênca do estímulo

quem há de esquecer
se a recordação se sobrepõe ao ódio
e é um ferrete indelével
na pele do escravo
basta lembrar um claustro a capela
ou a sala do capítulo daquela casa
para logo perceber como ela ficou
para sempre assombrada
pela figura voluminosa do diretor

morreu enfim como morrem
todos os homens e todas as bestas
mesmo as mais paquidérmicas e diluvianas

este é o panegírico possível
quase já despido de ódios, porque a morte
tudo lava e leva
e talvez leve também
esta negra lembrança

mas aqueles corredores  escadarias
salas e dormitórios e todos os meus íntimos 
corredores e recessos continuarão a ser
sobressaltados pelo seu jurássico espetro

Anthero Monteiro