ah quando chegávamos do ateneu
terça-feira, 11 de junho de 2013
E depois?
ah quando chegávamos do ateneu
depois de um filme com a máquina
de projeção no meio da sala
tínhamos que contar tudo a minha
mãe
que ficara em casa pois havia
sempre muito
que fazer mesmo aos domingos à
tarde
e depois? e depois? perguntava
ela
e a avó contava-lhe a cena do
terrível leão
que se ia aproximando do público
apavorado
de fauces hiantes um rugido a
atroar
já dentro dos nossos ouvidos
aquele bafo já a envolver-nos
como uma nuvem letal
os dentes já cravados no peito e
a fera
a estraçalhar-nos membro a membro
enquanto ela a avó fechava os
olhos
numa última prece e eu me atirava
para debaixo das cadeiras e me
enovelava
como um bicho de conta
inteiriçado de medo
e depois? e depois? era ainda minha
mãe
a querer saber mais daquela
matiné
e a avó na lentidão de quem
carrega
um bornal de anos sofridos lá
contava
a outra cena aquela do comboio
que ia engolindo a estação e a
paisagem
e a tela e o ateneu e o público e
iria fazer
da linha e do lugar um lago de
sangue
ela fechara de novo os olhos encomendara-se
à virgem e a todos os santos e eu
deixara-me
de novo submergir já incrédulo da salvação
e depois? e depois? voltava a
curiosidade
já tolhida de espanto a inquirir
da pobre velha
sempre vestida de negro e incapaz
de entender
os enigmas da luz e daquela
lâmpada de aladino
que ia operando prodígios sobre
prodígios
até surgir na tela para nosso sossego
a palavra fim
e depois? e depois?
depois fez-se noite e eu já não
vi mais nada
Anthero Monteiro
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