"diavolo in corpo"
(foto A.M.)
certo dia
boca da noite
do fundo
da cozinha
uma
cadeira decidiu dirigir-se no seu vagar
para a
porta que abria para o quintal
à luz
soturna do candeeiro de petróleo
minha mãe
que passava a ferro
só deu
pelo fenómeno quando uma perna
do errante
animal roçou nas suas
gritos de
terror trespassaram a noite
eram
imprecações esconjuros
invocações
de nomes divinos
persignações
bênçãos maldições
uma fiada
estrídula de incoerências
logo
acorri do lado de fora em seu auxílio
tão
espavorido quanto ela alucinada
trazia
porém na mão a ponta do cordel
que
servira de arreata ao quadrúpede ambulante
um fio
tisnado extraído à cana de um foguete
minha mãe
olhou-me e apesar do desvario
logo
entendeu o porquê do insólito
ao ver
aonde se prendia a outra ponta do barbante
sim tinha
diante de si uma vez mais
o causador
de sobressaltos o sobressalto em pessoa
o diabo o
belzebu o mafarrico o tentador
uma legião
completa de demónios
ensaiei
uma explicação uma desculpa um álibi
mas a voz
jorrou muito de dentro
mais
gutural e cavernosa do que nunca
há muito
minha mãe que nada entendia
das
transformações da infância para a adolescência
acreditava
que essa voz me golfava não da garganta
mas das
fauces infernais que me habitavam
o autor
dessa disfonia era o mesmo
que
trepava como um felino às árvores
e se
enroscava nos ramos mais altos
como a
serpente tentadora do éden
era o
mesmo que voava descalço
sem se
magoar nas pedras soltas da aldeia
e ninguém
conseguia acompanhar
era o
mesmo que só não ganhava
a figura
do inimigo que ela via horrorizada
nas
pagelas de santa gemma galgani
porque
apesar da juvenil idade era já capaz
de
transfigurar-se como qualquer diabo experiente
ela sabia
também que os espíritos malignos
dos
possessos são dificilmente expulsos
apenas
pela oração e pelo chamamento
de deus de
cristo da virgem e dos anjos
e uma boa
bateria de açoites
é sempre
eficaz complemento
exigiu-me
por isso fosse buscar o chicote
reservado
para os superiores corretivos
ora o
chicote nome dado lá em casa
a um
látego de tiras de pneu de bicicleta
tinha-o
enterrado julgava eu que o sepultara
para
sempre debaixo da laranjeira
anjos
caídos não merecem piedade
o
azorrague tinha por força que comparecer
e se o
tinha escondido mais uma razão
para
apanhar dobrado
e
lá foi o dócil diabrete
exumá-lo
do fundo do quintal
sob o luar
e sob a laranjeira
para o
entregar pouco depois
para os
devidos efeitos
à
exorcista lá de casa
escrevo
este poema para esconjurar
de vez a
lembrança de cada chicotada
e nunca me
esquecer
do
maternal amor
Anthero Monteiro