quinta-feira, 20 de junho de 2013

o possesso ("diavolo in corpo")














"diavolo in corpo"

(foto A.M.)




certo dia boca da noite
do fundo da cozinha
uma cadeira decidiu dirigir-se no seu vagar
para a porta que abria para o quintal

à luz soturna do candeeiro de petróleo
minha mãe que passava a ferro
só deu pelo fenómeno quando uma perna
do errante animal roçou nas suas

gritos de terror trespassaram a noite
eram imprecações esconjuros
invocações de nomes divinos
persignações bênçãos maldições
uma fiada estrídula de incoerências

logo acorri do lado de fora em seu auxílio
tão espavorido quanto ela alucinada
trazia porém na mão a ponta do cordel
que servira de arreata ao quadrúpede ambulante
um fio tisnado extraído à cana de um foguete

minha mãe olhou-me e apesar do desvario
logo entendeu o porquê do insólito
ao ver aonde se prendia a outra ponta do barbante
sim tinha diante de si uma vez mais
o causador de sobressaltos o sobressalto em pessoa
o diabo o belzebu o mafarrico o tentador
uma legião completa de demónios

ensaiei uma explicação uma desculpa um álibi
mas a voz jorrou muito de dentro
mais gutural e cavernosa do que nunca
há muito minha mãe que nada entendia
das transformações da infância para a adolescência
acreditava que essa voz me golfava não da garganta
mas das fauces infernais que me habitavam

o autor dessa disfonia era o mesmo
que trepava como um felino às árvores
e se enroscava nos ramos mais altos
como a serpente tentadora do éden

era o mesmo que voava descalço
sem se magoar nas pedras soltas da aldeia
e ninguém conseguia acompanhar

era o mesmo que só não ganhava
a figura do inimigo que ela via horrorizada
nas pagelas de santa gemma galgani
porque apesar da juvenil idade era já capaz
de transfigurar-se como qualquer diabo experiente

ela sabia também que os espíritos malignos
dos possessos são dificilmente expulsos
apenas pela oração e pelo chamamento
de deus de cristo da virgem e dos anjos
e uma boa bateria de açoites
é sempre eficaz complemento

exigiu-me por isso fosse buscar o chicote
reservado para os superiores corretivos
ora o chicote nome dado lá em casa
a um látego de tiras de pneu de bicicleta
tinha-o enterrado julgava eu que o sepultara
para sempre debaixo da laranjeira

anjos caídos não merecem piedade
o azorrague tinha por força que comparecer
e se o tinha escondido mais uma razão
para apanhar dobrado

e lá foi o dócil diabrete
exumá-lo do fundo do quintal
sob o luar e sob a laranjeira
para o entregar pouco depois
para os devidos efeitos
à exorcista lá de casa

escrevo este poema para esconjurar
de vez a lembrança de cada chicotada
e nunca me esquecer

do maternal amor

Anthero Monteiro