sexta-feira, 20 de agosto de 2010
Raiva
ah! esta raiva rubra que me rasga
que me atordoa que me atira ao chão
esta garganta seca que me engasga
estes olhos por dentro em combustão
esta febre de amar uma quimera
este sonho sem asas rente à lama
esta festa adiada e eu sempre à espera
da cama que me abra quem não ama
esta ilusão perdida desde o início
esta fé insensata e sem motivo
este saber-me sobre um precipício
esmagado a fingir que inda estou vivo
esta ternura parva tão sem jeito
que a mim me vence e que te não convence
este sentir o coração no peito
mas não saber a quem é que pertence
ah! esse olhar que me olha e me não vê
essa boca que quase a minha toca
que não aprende nunca - mas porquê -
o caminho da sede desta boca
essas mãos tão vazias destas minhas
esses braços tão órfãos destes meus
e tu a rir assim lá donde vinhas
e eu a gritar piedade em vão aos céus
esse passo apressado e desenvolto
onde vem tua imagem que me alegra
mas que logo me deixa mais revolto
porque não desce à minha rua negra
esse ouvir os meus versos tão adversos
sem sentir esta dor que me alfineta
sem descobrir os loucos universos
onde se esfaima o pobre teu poeta
ah! deixem-me ficar aqui de bruços
amarfanhado inócuo deprimido
a misturar a raiva e os soluços
na merda desta vida sem sentido
Anthero Monteiro,
Canto de Encantos e Desencantos,
Corpos Editora, V.N.Gaia, 2005, 2.ª ed.