quarta-feira, 13 de março de 2013

Primeiros passos














tudo poderia ter sido como na tela de Millet
mais tarde reinventada a seu modo por Van Gogh
é como se ambos tivessem presenciado a mesma cena
mas de ângulos diversos ou em momentos diferentes
o primeiro sob a luz fosca de uma manhã fria
o segundo no arredar das nuvens para um sol triunfante

o portão do pátio abre para o campo fronteiro à casa
a vedação em tábuas verticais entre ambos os espaços
suporta uma sebe mais baixa e a roupa estendida
cabriolando ao vento sob a fronde das árvores

a mãe junto à saída segura a criança por baixo
dos braços  que se erguem em direção ao pai
este largara a pá e o carro de mão
e ali está acocorado um joelho no solo
de braços também abertos encorajando o encontro

decerto a criança erguerá um pé titubiante
dará um passo em frente e inaugurará assim
o longo caminho de uns três metros
que o levará ao ancoradouro do abraço paterno

também eu terei assim inaugurado o itinerário
pela vida que me trouxe a esta mesa
onde obrigo as palavras a alinharem-se
como pelotões de submissos soldados

o local terá sido idêntico as personagens
terão  sido outras em vez do pai longíquo
a ganhar o futuro na orla de outros mares
talvez o xaile preto e os zelos da avó

como falaria de outro modo do primeiro passo
como evocar o espanto inicial o primeiro olhar
o primeiro balbucio a primeira sílaba
a primeira palavra a primeira surpresa
o primeiro susto a primeira lágrima
a primeira lembrança o primeiro esquecimento

era o tempo da primeira grande amnésia
do que fui do que vi do que vivi
ficando apenas documentados dois ou três
momentos fugidios e talvez sem préstimo
em retratos da fotografia evaristo

se vivemos outra vida terrena anterior
como creem alguns tudo esquecemos bebendo
do rio letes ao entrar no reino das sombras
voltámos a beber da mesma água do esquecimento
antes de regressar à vida  e retomar um corpo
para não trazer connosco reminiscências
do que viram os olhos no mundo subterrâneo

bebemos certamente em demasia dessa água
sulfúrica que ainda nos faz deslembrar os traumas
do eclodir das águas dos gritos da maior dor
da tesoura da separação da chucha omnipresente
dos cueiros mijados do gatinhar pelo chão
dos pés trôpegos e das quedas e dos choros
e de todas as indecorosas figuras do caloiro
que se matriculou na escola da vida
totalmente ignorante e já desmemoriado

Anthero Monteiro