Agonia (1915),
terça-feira, 12 de março de 2013
últimas palavras
Agonia (1915),
Edvard Munch in
www.dw.de/popups/popup_gallery/pt_edvardmunch.html
quando a morte se insinuou porta adentro
victor hugo afiançou estar a
ver uma negra luz
lorde byron observou que chegara
a hora de descansar
beethoven declarou que era já tarde
wagner que estava a sentir-se
muito mal
mas h. g. wells proferiu apenas i’m
all right
darwin asseverou que não sentia o
mínimo medo de morrer
e bernard shaw que isso era mais
fácil do que escrever uma comédia
cristo afirmou que tudo estava
consumado
e freud que tudo aquilo era
absurdo
muitos acharam-se ainda
merecedores de um último obséquio
rosalia pediu que abrissem a
janela para ver o mar
goethe que deixassem entrar mais
luz
mozart que lhe dessem a ouvir uma
vez mais os sons da sua alegria
e o conde de mirabeau que pudesse
também morrer ao som da música
george washington que não lhe
fechassem o corpo num caixão sem terem passado dois dias depois da morte
beethoven que aplaudissem o fim
da comédia
mussolini que o seu executor lhe
disparasse para o peito
e picasso que bebessem à sua
saúde já que ele não podia beber mais
guilherme braga invocou deus e disse estar a sofrer mesmo com o céu coalhado
de estrelas
cromwell agradeceu a chegada da
morte pois assim estava salvo
adam smith gritou liberdade para
sempre
e voltaire quando o padre lhe
pediu que renunciasse a satã replicou que aquela não era boa altura para fazer
inimigos
outros só terão soltado um
monossílabo ou nada puderam dizer
sansão apenas terá tido tempo
para um ui quando o templo desabou sobre ele
sófocles só conseguiu rir com um
ataque de alegria
e aretino morreu às gargalhadas
isadora duncan ia a abrir a boca
e foi estrangulada com a écharpe presa a uma roda do descapotável
tennessee williams engoliu as
palavras com uma tampa de remédio
e anacreonte nada disse porque uma
grainha de uva bastou para o calar para sempre
quanto a mim creio ainda estar
vivo e ileso apesar de tudo
mas a avaliar pelo que me
aconteceu um dia
em situação de morte iminente
não direi nada que seja
edificante
lembro-me bem regresso a
casa hora de ponta
ao volante a cem
de repente uns chuviscos
a prudência a aflorar o travão
o carro a guinar à esquerda
através do trânsito em sentido
contrário
o abismo ali diante e já
sem tempo para escolher as
palavras
saiu-me apenas esta nobre
interjeição
fodeu-se
Anthero Monteiro