Tinha duas faces como a lua
Uma que toda a gente conhece
e outra (a que nunca se vê, a que não reflecte o sol)
e que ninguém (ou quase ninguém) está interessado em conhecer
É esse o teu lado que me fascina
que sempre me fascinou
Pousavas sobre as coisas (uma bicicleta, os lábios de Yves Montand)
como uma borboleta
e não pesavas mais do que isso
e o écran ficava amarelo quando te punhas a sacudir
o pólen que trazias agarrado nas mãos
Eu que sempre gostei de ir ao fundo de tudo
(e acabo por me ficar pela superfície de tudo)
custa-me a entender como é que tu ao passares a língua
pela casca de um fruto carnudo
lhe ficavas logo a conhecer o sabor ácido da polpa
90-60-90…
São essas rigorosamente as medidas do universo
em que te movias
as medidas do pesadelo
que faz com que de manhã o céu acorde com olheiras enormes
e eu todo partido como se tivesse levado uma grande surra
Vejo-te a navegar num mar onde milhares de homens
desaguam desesperadamente
O mar está encapelado
Nem me dou conta que está morta –
Subiram o pano
A sessão da tarde vai começar…
Gostaria de me encontrar depois contigo
num dos manicómios desta cidade
(há vários e vai ser difícil escolher)
Talvez nos pudéssemos dedicar aí a cultivar rosas
amarelas e fragrantes
nos jardins da nossa inconsistência
Jorge de Sousa Braga,
O Poeta Nu, Lisboa, Fenda, 1999