sábado, 26 de junho de 2010
Receita para abraço
Gustav Klimt,
O abraço
antes que nos abrace e abrase um daqueles nós
de víboras jorrando em lume das nuvens
antes que se fechem sobre nós os tentáculos de um tsunámi
antes que se abatam sobre o coração os acúleos dos escorpiões
antes que nos torture e triture o doce amplexo do nada
abracemo-nos nós (vê as horas - deram-nos escasso o tempo
e um abraço a sério pode durar uma eternidade)
abrir muito os braços deixá-los crescer e crescer
tê-los aptos disponíveis para abarcar
uma floresta impossível de sequóias
ou desenhar a órbita de um cometa errante
fechar os olhos invertê-los voltá-los para dentro
levá-los aos recessos mais íntimos da alma
esperar assim outra eternidade sem saber
o que de lá vem se a assombração do mundo
se uma hecatombe se a criação de uma nova galáxia
esperar como quem sabe que vem chegando
num carro de aromas a primavera
esperar que se desdobrem um a um lentamente
todos os pampilhos das pradarias
depois finalmente cerrar os braços
uns sobre os outros com o vagar das corolas fechando-se
aconchegar os peitos apertá-los tanto até esmagar
os maquinismos pulsantes que os habitam
esperar ainda que se escoem todos os sons interiores
e deixar-se morrer como um eco extraviado
ou um cavalo exausto perdido na noite
enquanto as íntimas salas se inundam de silêncio
quando enfim ressuscitarmos desta ansiada morte
demorar mais uma eternidade
para recuperar os próprios braços
(por isso são tão raros os abraços verdadeiros)
Anthero Monteiro (inédito)