segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
Azagaia, árvore, sombra
Foto A.M.
Há objectos que perseguem a nossa infância,
depois, vida fora, esquecem-se os seus mágicos nomes,
a sonhada utilidade que os anima.
Poderíamos pressenti-los dentro de nós,
e isso sucede, por instantes, quando o fundo que os obscurece
se ilumina de repente
e os distinguimos a contra-luz.
Silhuetas animam-se na memória. Uma breve,
quase acessória, viagem no tempo começa.
Em África, na casa onde nasci, e depois de casa em casa
- eram frequentes as mudanças ?
o meu pai pendurava uma azagaia na parede.
Sempre a mesma azagaia. Era um objecto nobre.
marcava um hábito guerreiro: imaginar que a sustinha sobre a cabeça,
que a arremessava longe, trespassando a sombra
da árvore que se erguia no quintal.
trespassava a sombra e não a árvore, repare-se.
E então a sombra, sob o sortilégio do imaginado arremesso,
começava a retrair-se e a afilar-se. Desaparecia.
Com o desaparecimento da sombra
ficava apenas a árvore e a longa azagaia presa ao solo.
A sombra de uma árvore visita-me agora.
Vem nos meus sonhos recentes dizer-me que há um livro
nos sonhos, e que esse livro se escreve
com a linguagem crepuscular da memória.
Sei que se trata de uma sombra órfã.
Que se soltou das contingências de lugar e luz
para viajar no eterno. Sei agora que a substância da árvore
se aliou à substância da azagaia. Que ambas vibraram,
continuam a vibrar, juntas.
Luís Quintais
Natural de Angola (1968). Antropólogo social, professor no Departamento de Antropologia da Univ. de Coimbra.
Autor de A Imprecisa Melancolia (1995, Prémio Aula de Poesia de Barcelona), Umbria (1999), Verso Antigo (2001), Angst (2002), Duelo (2004, Prémios Luís Miguel Nava - Poesia 2005 e PEN Clube Português de Poesia) e Canto Onde (2006).