sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Ode à imprescindível beleza












Foto A.M.



aí vem mais um dia para o rol dos perdidos e não achados
bem se esmerou ontem o meteorologista
bem se esmerou o sol para não o defraudar
bem se esmeraram as aves pintando mais azul
bem se apura o silêncio pé ante pé nos ramos
e me insinuo na amplidão vestido de aromas

mas como alçar-me para além de mim
se não posso abstrair-me do chão
desta vala comum onde se debruçam os continentes
onde nos vamos atolando através dos séculos
estrato após estrato

e entristeço como uma raiz doente
volto a olhar a mentira das árvores magníficas
alimentadas desta podridão
sei que desafiam a eternidade
desenhando no ventre impassíveis círculos concêntricos
tudo se prepara para nada modificar
tudo admite como certo o hoje igual ao ontem e ao amanhã

entristeço ainda mais
tudo quero subverter
sobretudo a lógica das raízes
a lógica dos desenhos pueris
com um sol presidindo à natureza

só assim vale a pena existir
ou estarão à espera que eu me fique sentado
apenas a entristecer apenas a desistir
quererão acaso que prescinda de uma outra humanidade
que me resigne a semear no mesmo chão as mesmas sementes
em vez de pôr raízes nas estrelas

convoco este silêncio este sol estas aves estas árvores
esta fragrância para minhas testemunhas
todos viram e sabem que atirei para fora do sofá das nuvens
o indolente criador adormecido logo ao sétimo dia
que rasguei os calendários que perpetuam a fealdade
que bati o pé ao sopé das montanhas que desistiram do voo

deixem-me ao menos pensar
que é possível um mundo mais belo
e que existo apenas por razões estéticas
que é ainda possível fazer dos dias rosas memoráveis
dos segundos compassos de uma nova criação
do sol um sorriso mais cálido e palpável
da água um olhar mais penetrante
da arte um esperanto de esperança
da ingenuidade a arma que desarma o próprio portador
da beleza a clorofila essencial

tirem-me do olhar os paquidermes de combate
de trombas mortíferas e manhas de lagarta
que nada têm de belo
tirem-me daqui os corpos devorados pelos semelhantes
e os troféus de sangue vivo arrastados pelas ruas
que só conseguem fazer brotar cardos de repugnância
poupem-me ao engano das romãs do ódio
porque eu sei que há romãs verdadeiras com sabor a romãs
verdadeiras coerentes inimitáveis
poupem-me aos roncos de estranhas aves
que as verdadeiras sabem entregar-se aos dedos do vento
sem outro fito que não seja recriar a beleza

deixem-me ao menos enquanto exista
que insista em buscar lirismo para os meus versos
para os meus universos

Anthero Monteiro, Desesperânsia,
V.N.Gaia, Corpos Editora, 2003