sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O trunfo do tempo











Foto

Anthero Monteiro




As flores que nascem contigo
são o leito onde hás-de morrer.

Neste dia a ilha dispensou o sol.
As águas opacas poderiam esconder
reluzentes peixes que nada
seria hoje revelado.
Respirávamos por baixo da cinza,
vagarosamente,
e crescia uma levíssima morte
que talvez nos lançasse
já noite
nas memórias vivas.

Antes, havíamos conhecido o privilégio.
Tivéramos tempo para construir
a muralha que sustentaria o céu.
Encontrámos as raízes puras
da nossa idade, éramos enormes
diante do fogo, como árvores
que chegassem de muito longe
para povoar o inóspito.
Havia esse saber secreto:
vem das árvores o ar
com que o fogo as consome.

O tempo conhece os seus trunfos.

As flores preparam-se para te receber.
E tu tens os olhos esculpidos pela febre,
a brancura, o frio nas mãos,
todos esses contrastes que antecedem
a chegada da primavera incalculável.
Sentes-te estalar desde o coração.
Há uma tapeçaria de gritos e silêncios
urdindo-se dentro de ti.
Pétalas no chão.

E agora és a primavera
em que todas as aves partiram,
levando consigo a ilha,
as memórias,
a dura revelação do rosto.

Vasco Gato, Imo,
V.N. Famalicão, Quasi Edições, 2003