sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Epílogo








Foto
Anthero
Monteiro





Estas páginas foram escritas a caminhar sobre a água, E só assim se podem ler.
Não procurei nada, Não retive nada.
Limitei-me a acusar o choque – brutal, por vezes – de um grão de pólen ou de uma brisa inesperada.

Não conheço outro ritmo que não seja o das estações.
Outra música que não a das gotas de chuva nos limoeiros.
Outra fuga que não a de um pássaro assustado com a sua própria sombra.

No fundo, o que me recuso a acreditar é que estejamos condenados.
Apesar dos prados envenenados, da lenta agonia dos rios e do mar.
Da atmosfera cada vez mais carregada das cidades.
Contanto que a poesia seja – continue a ser –

um lugar
onde ainda se pode
respirar

Jorge de Sousa Braga, «Os Pés Luminosos» in O Poeta Nu,
Lisboa, Fenda, 1999, 2.ª ed.

...Epílogo é um termo adequado para encerrarmos esta recolha de poemas sobre o tema que nos propusemos durante o mês de Fevereiro, agora no seu término: "ÁRVORES PARA ABRAÇAR".
Preparámos, assim, a sessão da Onda Poética do mês de Março, que, como habitualmente, se realiza na segunda Quinta-Feira do mês, ou seja, no dia 12, na Junta de Freguesia de Espinho.
A maioris dos textos escolhidos pelos leitores será deste blogue, ainda que os participantes tenham liberdade absoluta para trazerem os poemas que entenderem e donde lhes der mais jeito.
Na próxima sessão, a Onda Poética de Espinho comemorará 11 anos de existência, com sessões mensais quase sem interrrupção, apesar de alguns pequenos acidentes de percurso.

Todo esse tempo, estivemos ao serviço da Comunidade, da Poesia e dos Poetas, sem esperar compensações nem sequer palavras de reconhecimento, que nunca tivemos.
Obrigados, dizemos nós.

O trunfo do tempo











Foto

Anthero Monteiro




As flores que nascem contigo
são o leito onde hás-de morrer.

Neste dia a ilha dispensou o sol.
As águas opacas poderiam esconder
reluzentes peixes que nada
seria hoje revelado.
Respirávamos por baixo da cinza,
vagarosamente,
e crescia uma levíssima morte
que talvez nos lançasse
já noite
nas memórias vivas.

Antes, havíamos conhecido o privilégio.
Tivéramos tempo para construir
a muralha que sustentaria o céu.
Encontrámos as raízes puras
da nossa idade, éramos enormes
diante do fogo, como árvores
que chegassem de muito longe
para povoar o inóspito.
Havia esse saber secreto:
vem das árvores o ar
com que o fogo as consome.

O tempo conhece os seus trunfos.

As flores preparam-se para te receber.
E tu tens os olhos esculpidos pela febre,
a brancura, o frio nas mãos,
todos esses contrastes que antecedem
a chegada da primavera incalculável.
Sentes-te estalar desde o coração.
Há uma tapeçaria de gritos e silêncios
urdindo-se dentro de ti.
Pétalas no chão.

E agora és a primavera
em que todas as aves partiram,
levando consigo a ilha,
as memórias,
a dura revelação do rosto.

Vasco Gato, Imo,
V.N. Famalicão, Quasi Edições, 2003

Árvores















Foto
Anthero Monteiro



São plátanos palmeiras castanheiros
jacarandás amendoeiras e até as
oliveiras que
quando a noite cai na infância formam uma
cortina escura na estrada frente à casa:
árvores apagando os dias que a memória
avidamente esconde
no corpo do seu gémeo.

Penetra inutilmente
na terra essa raiz do branco plátano
adolescente
e o campo do tempo onde as palmeiras eram
pilares do corpo nu símbolo de
si mesmo, à luz
do dia fixo, já se estende
na húmida manhã dos castanheiros.

Esquecimento que tudo enfim possuis
e geras
a ofuscante luz igual à da
memória, do tempo como ela
filho, construtor da ausência,
em vão te invoco

Tu que mudas a roxa amendoeira
em brancas flores do jacarandá
entrega a minha vida às árvores
que foram na manhã e no crepúsculo
no meio-dia e na noite, palavra
clara que traz o dia em si fechado

Gastão Cruz

A um negrilho





















Na terra onde nasci há um só poeta
Os meus versos são folhas dos seus ramos.
Quando chego de longe e conversamos,
É ele que me revela o mundo visitado.
Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada,
E a luz do sol aceso ou apagado
É nos seus olhos que se vê pousada.

Esse poeta és tu, mestre da inquietação
Serena!
Tu, imortal avena
Que harmonizas o vento e adormeces o imenso
Redil de estrelas ao luar maninho.
Tu, gigante a sonhar, bosque suspenso
Onde os pássaros e o tempo fazem ninho!

Miguel Torga

Quando eu morrer...









Fot
o Anthero Monteiro




Quando eu morrer batam em latas...
(Mário de Sá-Carneiro)


quando eu morrer
cair abrupto
olhem-me apenas
de olhar enxuto
nem água benta
nem flores de luto

deixem-me ali
sob uma árvore
num chão de folhas
nunca de mármore
não quero então
ter outro cárcere

que a minha morte
não a deplorem
só as magnólias
o orvalho chorem
tristes transidas
só elas orem

elas me amaram
eu as amei
de outros amores
não sei não sei
não digam nada
não vale a pena
deixem que a noite
seja serena

quando eu zarpar
para a viagem
sem a coragem
de me matar

Anthero Monteiro, Desesperânsia,
V.N.Gaia, Corpos Editora, 2003

Ode à imprescindível beleza












Foto A.M.



aí vem mais um dia para o rol dos perdidos e não achados
bem se esmerou ontem o meteorologista
bem se esmerou o sol para não o defraudar
bem se esmeraram as aves pintando mais azul
bem se apura o silêncio pé ante pé nos ramos
e me insinuo na amplidão vestido de aromas

mas como alçar-me para além de mim
se não posso abstrair-me do chão
desta vala comum onde se debruçam os continentes
onde nos vamos atolando através dos séculos
estrato após estrato

e entristeço como uma raiz doente
volto a olhar a mentira das árvores magníficas
alimentadas desta podridão
sei que desafiam a eternidade
desenhando no ventre impassíveis círculos concêntricos
tudo se prepara para nada modificar
tudo admite como certo o hoje igual ao ontem e ao amanhã

entristeço ainda mais
tudo quero subverter
sobretudo a lógica das raízes
a lógica dos desenhos pueris
com um sol presidindo à natureza

só assim vale a pena existir
ou estarão à espera que eu me fique sentado
apenas a entristecer apenas a desistir
quererão acaso que prescinda de uma outra humanidade
que me resigne a semear no mesmo chão as mesmas sementes
em vez de pôr raízes nas estrelas

convoco este silêncio este sol estas aves estas árvores
esta fragrância para minhas testemunhas
todos viram e sabem que atirei para fora do sofá das nuvens
o indolente criador adormecido logo ao sétimo dia
que rasguei os calendários que perpetuam a fealdade
que bati o pé ao sopé das montanhas que desistiram do voo

deixem-me ao menos pensar
que é possível um mundo mais belo
e que existo apenas por razões estéticas
que é ainda possível fazer dos dias rosas memoráveis
dos segundos compassos de uma nova criação
do sol um sorriso mais cálido e palpável
da água um olhar mais penetrante
da arte um esperanto de esperança
da ingenuidade a arma que desarma o próprio portador
da beleza a clorofila essencial

tirem-me do olhar os paquidermes de combate
de trombas mortíferas e manhas de lagarta
que nada têm de belo
tirem-me daqui os corpos devorados pelos semelhantes
e os troféus de sangue vivo arrastados pelas ruas
que só conseguem fazer brotar cardos de repugnância
poupem-me ao engano das romãs do ódio
porque eu sei que há romãs verdadeiras com sabor a romãs
verdadeiras coerentes inimitáveis
poupem-me aos roncos de estranhas aves
que as verdadeiras sabem entregar-se aos dedos do vento
sem outro fito que não seja recriar a beleza

deixem-me ao menos enquanto exista
que insista em buscar lirismo para os meus versos
para os meus universos

Anthero Monteiro, Desesperânsia,
V.N.Gaia, Corpos Editora, 2003

O velho poeta







Eugénio de Andrade
a quem o poema de
Jorge Sousa Braga
é dedicado


O seu desejo era que plantassem
um espinheiro numa nesga de

terra frente ao mar e ao rio
e que ele florisse nem

que fosse uma única vez
Esse espinheiro protegê-lo-ia

mais do frio que um edredão
A nesga de terra continua lá

e o mar e o rio e a manhã
Só o espinheiro e o poeta

é que não

Jorge de Sousa Braga

Ninhos












Foto A.M.




Dias antes de morrer, acordou com vontade de ir aos ninhos.
Tentou levantar-se da cama. Que queria trepar às árvores.
Que sabia de um ninho de melro abandonado.
Disseram-lhe que a primavera já tinha passado,
que as árvores estavam escorregadias,
que já não havia árvores,
que os pássaros já não sabiam fazer ninhos...
Mas ele continuava a insistir.
Entrou depois num longo delírio.
De vez em quando pronunciava palavras
como musgo cor-de-rosa, lama seca,
palavras que se foram tornando cada vez mais indistintas.
Por último, parece que chilreava.

Jorge de Sousa Braga, O Poeta Nu,
Lisboa, Fenda, 1999, 2.ª ed.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A voz da tília















Diz-me a tília a cantar:" Eu sou sincera,
eu sou isto que vês: o sonho, a graça,
deu ao meu corpo o vento, quando passa,
este ar escultural de bayadera...

E de manhã o sol é uma cratera,
uma serpente de oiro que me enlaça...
Trago nas mãos as mãos da Primavera...
E é para mim que em noites de desgraça

toca o vento Mozart, triste e solene,
e à minha alma vibrante, posta a nu,
diz a chuva sonetos de Verlaine..."

E, ao ver-me triste, a tília murmurou:
"Já fui um dia poeta como tu...
Ainda hás-de ser tília como eu sou..."

Florbela Espanca, Charneca em Flor, 1930

À figueira da Quinta de S. Pedro – S. Lourenço, Azeitão – pedindo à sua dona que nunca a deixe morrer




Natureza morta
com figos, de
Luis Eugenio Melendez
(1716-1780)


Foto in
www.ceja.educagri.fr/




Na profusão dos gestos, a presença: a figueira.
Merecia ir à piscina tomar banho, a figueira.
Merecia mais que muita gente,
que, semovente,
passarinheira,
não passa afinal de estar à beira.

Com seus braços,
nadaria, ao mesmo tempo, em todos os sentidos,
seria a presença inteira
(e nunca, meu Deus!, a D. Maria
ou a D. Fernanda Figueira…)

- Generosa figueira,
quando estiveres doente quem te deita?

Alexandre O´Neill, Coração Acordeão, 1973













Foto in
www.diariodetrasosmontes.com


Dos castanheiros a folhagem árida
já desce no ar morto que se move
dentro da palidez do céu de outono
sobre as aves imóveis

Movem-se as folhas só na tarde escassa
de clareiras do sol movem-se as aves
extintas do outono
dentro dele e do sol

que mais que as aves mortas sob as árvores
se move
e movem-se aves

mais do que as folhas que do alto caem
mas sem sol grande as aves não se movem
nem já não caem com a calma as aves

Gastão Cruz

Imagem









A Macieira,
de Gustav
Klimt




Foto in
http://www.bbc.co.uk/portuguese/especial/106_klimt/index.shtml


Este é o poema de uma macieira.
Quem quiser lê-lo,
Quem quiser vê-lo,
Venha olhá-lo daqui a tarde inteira.

Floriu assim pela primeira vez.
Deu-lhe um sol de noivado,
E toda a virgindade se desfez
Neste lirismo fecundado.

São dois braços abertos de brancura;
Mas em redor
Não há coisa mais pura,
Nem promessa maior.

Miguel Torga

Ressurreição

Volto a cantar, e voltam-me à memória
As rústicas imagens,
Que guardei na retina
De menino:
O repique do sino
Depois das negras horas da Paixão,
E a brejeira
Canção
Que num toco
Já oco
De cerdeira
- Flauta que um pica-pau lhe dera -
A seiva assobiava à Primavera...

Miguel Torga, Diário VIII, 1959

Da realidade







Foto in

www.cirm.univ-mrs.fr




Que renda fez a tarde no jardim,
Que há cedros que parecem de enxoval?

Miguel Torga, Nihil Sibi (1948)

Fantasia










Foto A.M.




Canto ou não canto o limoeiro
aqui ao lado?
Ele é tão delicado!
Tem um jeito tão puro
de se encostar ao muro
onde vive encostado...

Canto ou não canto as tetas de donzela
que daqui da janela
vejo no limoeiro?
Elas são tão maduras...
E tão duras...
Têm uma cor e um cheiro...
Canto!
Nem serei o primeiro,
nem eu sou nenhum santo!

Miguel Torga, Antologia Poética,
Coimbra, Ed. do Autor, 1981

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O zambujeiro


















Foto in
www.fotodisardegna.it/




Deus disse: "O Zambujeiro nasça".
Viril, rompeu da terra o Zambujeiro.
O tronco é o dum homem das montanhas.
São mãos de cavador seus ramos. Só as folhas,
Delicadas, suaves... Pela noite,
Quando tudo se cala, mesmo os pássaros,
O Zambujeiro canta...

Sebastião da Gama, Pelo Sonho é que Vamos

Vegetação da infância











Onde está a antiga nogueira cujas raízes
entravam pela água? Sei que os seus ramos se partiam
de cada vez que o ribeiro enchia; que as folhas
se espalhavam pelo tanque, antes de se afundarem,
formando um lodo em que os pés escorregavam;
que o barulho das rãs ecoava na sua copa, enquanto
a noite se agitava com o vento frio que trazia
o outono. Mas de nada me serve este conhecimento,
agora que nada me diz se a nogueira existe, ainda,
nessa margem onde me sentei, ouvindo as rãs
e o vento, sem que me apercebesse do trabalho do tempo
no fundo das raízes. Ou antes: o que ele me dá é
uma inquietação áspera como o sabor das nozes
que se colhiam dessa árvore. Atiro-as para o armazém
da memória onde as sombras se acumulam; e
entro nessa árvore, como se fosse uma casa,
ou como se as suas ramagens se abrissem
num bater de asas impotentes para o voo.

Nuno Júdice, Teoria Geral do Sentimento
Lisboa, Quetzal, 1999

A um carvalho













Foto in
www.lookfordiagnosis.com


Forte como um destino,
Calmo como um pastor,
A sarça ardente é quando o sol, a pino,
O inunda de seiva e de calor.

Barbas, rugas e veias
De gigante.
Mas, sobretudo, braços!
Longos e negros desmedidos traços,
Gestos solenes duma fé constante...

Miguel Torga, Diário

A magnólia












Foto A.M.



A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu resplendor.

Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.

Luiza Neto Jorge

Romance de uma árvore à beira do caminho


















A japoneira do
Dr. Carlos
Soares
(Foto A.M.
)



Perto de Espinho havia uma árvore
havia uma árvore à beira do caminho.
E havia um buraco naquela árvore
perto de Espinho.

(E o povo sabia que havia um buraco
naquela árvore à beira do caminho.)

Mas quando vieram os embuçados
à procura dum médico em terras de Espinho
o povo calou-se não disse nada.
(E o povo sabia que havia um médico
naquela árvore à beira do caminho.)

Esta é uma história que todos sabem
em terras de Espinho.
Esta é a história duma árvore
à beira do caminho.

Era noite cerrada noite negra
era noite de morte no caminho.
E de repente chegaram os embuçados:
procuravam um médico em terras de Espinho.

Era noite sem lua noite de emboscada
noite dum homem não andar sozinho.
Por isso o povo não disse nada:
era noite de embuçados no caminho.

Disseram ao povo que havia um ferido.
Mostraram as mãos: seria sangue? Seria vinho?
E ninguém foi chamar o médico escondido
naquela árvore à beira do caminho.

Era noite sem lua noite de sangue
era noite de esperas no caminho
embuçados chegaram. Embuçados partiram.
Procuravam um médico em terras de Espinho.

Já corre um mensageiro para aquela árvore
À beira do caminho.

Há embuçados. Falaram dum ferido.
Mas o sangue que vimos era vinho.

Já o médico sai do seu buraco
naquela árvore à beira do caminho.
(ai a noite sem lua
ai o sangue que tem a cor do vinho.)

Catorze balas o esperavam
catorze balas o mataram nessa noite em Espinho.
E nunca mais o médico se escondeu
naquela árvore à beira do caminho.

Mas todos os anos na mesma noite
em que o sangue correra nessa aldeia de Espinho
as mãos do povo vinham florir
aquela árvore à beira do caminho.

De novo vieram os embuçados
de novo mataram em terras de Espinho.
Quando se foram já não havia
aquela árvore à beira do caminho.

Mas no dia seguinte no mesmo sítio
Em que havia uma árvore (perto de Espinho)
As mãos do povo vieram plantar
Outra árvore à beira do caminho.

De quando em quando voltam os embuçados
E cortam a árvore do povo de Espinho.
Mas há sempre alguém para plantar
Outra árvore à beira do caminho.

Manuel Alegre
in "O CANTO E AS ARMAS" - Edição de 1970

Esta é uma história verídica, ocorrida em 1940, perto de Espinho, é verdade, mas em Nogueira da Regedoura, concelho da Feira (embora tenha pertencido ao concelho de Espinho entre 1926 e 1928): é a história do Dr. Carlos Ferreira Soares, mais conhecida pelo povo como Dr. Prata, o amigo dos pobres, assassinado em plena ditadura salazarista pela Polícia Política. É também a história da sua japoneira, onde ele se escondia dos esbirros da Pide em pleno cemitério. Na sua campa, floresce também uma japoneira, a lembrar que, apesar de todas as prepotências, o amor pela liberdade continuará a florir nos nossos corações.
(Leia a narrativa destes factos no blogue "Histórias da Minha Terra", de Tiago Santos, aqui.)

Aquietação










Foto in
http://2.bp.blogspot.com





Melro arisco e feliz
Que, na brancura
Pura
Das camélias,
Chocas ovos pascais
Galados de ressurreição,
Quem te contou da triste maldição
Dos poetas,
Sombras de inquietação
E de agoiro maninho?
Sossega e amadurece
O mistério da vida.
E deixa que eu espreite envergonhado
Do poema gorado
Que sai da minha inveja enternecida.

Miguel Torga, Diário XII

Hoje, gatos no Clube Literário do Porto

Choramos a morte da árvore centenária











Foto A.M.



Choramos a morte
da árvore centenária
personagem central
da nossa infância
gigantismo surreal
frente à pequena riqueza
da nossa infância.
(Catástrofe ecológica em nossos corações enraizados)
Choramos a morte
da árvore centenária
as raízes expostas
longos, pétreos, calosos cordões rumo ao infinito
penosamente expõem
quão profunda a relação
da nossa juventude com sua temperança.
(Resta-nos agora chorar a morte
da nossa velha árvore centenária)
Choramos a morte
da árvore centenária
esperávamos um dia
mostrar aos nossos filhos
nomes troncamente escritos
velhos sonhos
que acabaram por tombar.
(Que nossas lágrimas reguem a terra
e que as sementes da árvore centenária
façam surgir uma nova companheira
para a infância dos nossos netos)

Ricardo Senna Guimarães

A árvore em fogo

Na ténue névoa vermelha da noite
Víamos as chamas, rubras, oblíquas
Batendo em ondas contra o céu escuro.
No campo em morna quietude
Crepitando
Queimava uma árvore.

Para cima estendiam-se os ramos, de medo estarrecidos
Negros, rodeados de centelhas
De chuva vermelha.
Através da névoa rebentava o fogo.
Apavorantes dançavam as folhas secas
Selvagens, jubilantes, para cair como cinzas
Zombando, em volta do velho tronco.

Mas tranquila, iluminando forte a noite
Como um gigante cansado à beira da morte
Nobre, porém, em sua miséria
Erguia-se a árvore em fogo.

E subitamente estira os ramos negros, rijos
A chama púrpura a percorre inteira
Por um instante fica erguida contra o céu escuro

E então, rodeada de centelhas
Desaba.

Bertolt Brecht
(Tradução de Paulo César de Souza)

Foto in
http://terresacre.org

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

As sílabas da casa


Tílias do Palácio de Cristal no Porto.
A foto é do bloque a seguir indicado,
ao qual faço vénia como homenagem ao melhor
blogue sobre árvores
(e com inúmeros e belos poemas).


dias-com-arvores.blogspot.com,


Uma pedra,
outra pedra – assim começa
a casa, o pátio onde o lume
dos gerânios morde a cal,
os degraus subindo ao feno
desatado, a marca
dos dentes nas maçãs e na cintura,
a porta estreita
do corpo, o nó de sombra mais secreto,
os cães correndo entre as primeiras
sílabas da noite, por fim
o inaudível rumor das tílias.

Eugénio de Andrade

O lódão

(...) Se falei de árvores com ácida melancolia é porque me derrubaram uma das que mais amei na vida, o velho lódão que me entrava pela varanda e dava notícia das estações. O móbil foi, naturalmente, atravancar a rua com mais automóveis (...). Levei anos e anos a lamentar-me, até que, não há muito ainda, numa cerimónia em que, surpreendentemente, me fizeram cidadão honorário do Porto, disse ao Presidente da Câmara que preferia uma árvore à porta do que a medalha de ouro da cidade, com que me distinguia e honrava toda a vereação. Ele prometeu-me outro lódão e cumpriu a promessa, deus seja louvado. Agora a casa onde moro é fácil de descobrir: tem um troncozito despido que lembra um poema meu, exíguo e desamparado.

Eugénio de Andrade, A Cidade de Garrett (1996)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

25/2, Quarta-Feira de Cinzas é Quarta Mal Dita






Quartas Mal Ditas
25 Fevereiro
22:00 horas
Piano Bar
Clube Literário do Porto

Tema:
Gatos, Gatos, Gatos


Coordenação:
Anthero Monteiro


Colaboração e Leituras:

António Pinheiro / Diana Devezas / Isa Mar / Luís Carvalho / Mário Vale Lima / Marta Tormenta / Rafael Tormenta

Convidadas:

- Graça Marto (pintora, autora da antologia Posso Entrar? - 30 Estórias com Animais e membro do MIDAS - Movimento Internacional em Defesa dos Animais)
- Rosa Brandão (pianista, dirigente da SOS- AniArouca
)


Clube Literário do Porto
Rua Nova da Alfândega, n.º 22
4050-430 Porto
T. 222 089 228
Fax. 222 089 230
Email: clubeliterario@fla.pt
URL: www.clubeliterariodoporto.co.pt
BLOGUE: http//www.clubeliterariodoporto.blogspot.com

Que luz feliz estar a ver as árvores...












Foto A.M.



Que luz feliz estar a ver as árvores
a rendilhar a madrugada fina
de um Dezembro subtil em que se esparze
só a memória da ternura antiga.
Leve persiste a nitidez das árvores.
Mas se, às vezes, se contrista
é porque o voo, atropelando o instante,
rascunha o susto na pressa da retina.
Desembacia-se a subtilidade
de estar a ver. Vem acima
a memória feliz de havermos visto as árvores
e de estarmos a vê-las do fundo de outra vida.

Fernando Echevarría, Geórgicas,
Porto, Afrontamento, 1998

N. em 1929. Cursou Humanidades em Portugal, Filosofia e Teologia em Espanha.
Exilado em Paris desde 1961, parte para Argel em fins de 1963, regressando àquela cidade em meados de 1966. Aí reside desde então.

A uma cerejeira em flor















Foto in
www.baixaki.com.br



Acordar, ser na manhã de Abril
a brancura desta cerejeira;
arder das folhas à raiz,
dar versos ou florir desta maneira.

Abrir os braços, acolher nos ramos
o vento, a luz, ou o quer que seja;
sentir o tempo, fibra a fibra,
a tecer o coração de uma cereja.

Eugénio de Andrade, As mãos e os frutos (1948)

As Árvores da Fonte do Sol



















O David decide recuperar todas as árvores
que vegetam entre silvas na Fonte do Sol.
Depois de as ter plantado e acarinhado
durante anos ---- confesso que desisti: a terra
é dura e seca e o mato tem mais força do que eu..
Mas o intrépido David mobiliza as primas que,
devidamente apetrechadas, de alfaias ao ombro,
caminham para o matagal e deitam mãos à obra.
De repente descobrem:
- Olha a Pereira em flor! ---- Deleito-me: é verdade!
Como as ervas são muitas eles começam por abrir
um espaço de respiração em torno de cada árvore.
- Olha esta aqui! ---- diz a Sofia, ou talvez a Inês,
quem sabe se a Patrícia.
- É uma Oliveira, não é? ---- Digo que sim
mas eles querem saber se é mansa ou brava,
se lhes arrancam o mato ou a deixam assim.
Hesito. E respondo-lhes:
- Se fosse um bicho percebia-se logo! Então
se fosse um toiro... largávamos todos a orrer!
Mas uma árvore não tuge nem muge! ---- Decidimos
finalmente, que, mansa ou brava, seria tratada
com o mesmo ardor ---- e o mesmo amor.

Teresa Rita Lopes, Jogos, Versos e Redacções,
Lisboa, Editorial Presença, 2001

Ao rubro ímpeto da romãzeira




















Dia dos meus anos hoje. Parabéns sabem-me
a condolências. Setembro é um mês de vogais
melancólicas. Tenho passado quase todos os dias
com um sabor a milagre na boca. Lá está
a mesma romãzeira oferecendo suas romãs
abertas suas fêmeas feridas escarlates.
É já velha tem troncos secos e ossudos
mas é jovem o interior de seus frutos
e de seus sumos. Saúdo-a e digo-lhe:
- À tarde vou ver-te. Não quero festa
de anos nem bolo de velas nem a imbecil
cantilena de parabéns mas havemos de brindar
em silêncio só as duas a esse antigo tempo
que ainda nos habita e à felicidade
que nunca aconteceu. Talvez o rubro ímpeto
que te faz continuar a dar romãs me dê a mim
recados desse país natal de que sou órfã desde
sempre antes mesmo de nascer.

Teresa Rita Lopes, Afectos,
Lisboa, Editorial Presença, 2000, 1.ª ed.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Gingo biloba












Folhas de
gingo biloba ou
ginkgo biloba


A folha desta árvore que de Leste
Ao meu jardim se veio afeiçoar,
Dá-nos o gosto de um sentido oculto
Capaz de um sábio edificar.

Será um ser vivo apenas
Em si mesmo em dois partido?
Serão dois que se elegeram
E nós julgamos num unidos?

Pra responder às perguntas
Tenho o sentido real:
Não vês por meus cantos como
Sou uno e duplo, afinal?

J. H. Goethe (1749 - 1832), Poemas,
Coimbra, Centelha, 1986, Versão de Paulo Quintela

A ginkgo biloba ou nogueira-do-Japão é, afinal, uma árvore de origem chinesa, um verdadeiro fóssil vivo, considerada símbolo da paz, por se ter verificado que resistiu à explosão da bomba de Hiroshima. É porventura a planta mais estudada e é muito usada em farmacologia. A designação "biloba" provém do facto de a sua folha ser bilobada, característica aproveitada pelo poeta alemão Goethe para, em 1815, escrever este poema sobre a unidade e a dualidade.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A alma do Rossio


Lá do alto os quatro torreões testemunharam
o desfile patético da história.
Viram passar os reis e as rainhas
os condes e os lóios, amigos e inimigos.
Viram justas, torneios e batalhas,
incursões de Almansor e Bonaparte.
E viram multidões a sucumbir à peste
ou a tentar fugir-lhe com votos e ex-votos.
Todos passaram como passam as torrentes do Cáster.
Jazem estrato após estrato neste chão
de que se nutrem os plátanos da praça.
Entre ramos e folhas que se agitam
vagueiam essas sombras do passado.
É aí que rumoreja a alma do Rossio.

Come e bebe e ri e saboreia o instante,
olhando para onde aponta a ramaria.
Esquecerás assim que também tu
serás passado e chão e serás alvo
do riso milenar dos torreões impávidos.

Anthero Monteiro

Poema inscrito na parede do Restaurante Bar Rossio com Alma,
no centro de Santa Maria da Feira,
e expressamente redigido pelo autor para o efeito.
(Publicado na Revista VILLA DA FEIRA n.º 20,
Santa Maria da Feira, LAF - LIga dos Amigosda Feira)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Cortaram uma árvore










Foto A.M.




Cortaram uma árvore
E a terra chorou

Cortaram outra árvore
E a terra chorou

E tantas árvores mais...

E a terra chorou
Chorar tanto também cansa
Quem pode enxugar as lágrimas
Da terra cansada?

Nem as mãos de uma criança...

Matilde Rosa Araújo, Fadas Verdes,
Porto, Liv. Civilização, 1994

Árvore

















Foto A.M.





Forço e quero ao fundo delicadamente
como subindo no sentido da seiva
espraiar-me nas folhas verdejantes,
espaçado vento repousando em taças,
mão que se alarga e espalma em verde lava,
tronco em movimento enraizado,
surto da terra, habitante do ar,
flexíveis palmas, movimentos, haustos,
verde unidade quase silenciosa.

António Ramos Rosa, Ocupação do Espaço,
Lisboa, Portugália, 1963

O Outono

















Foto A.M.







Já o sol, Platero, começa a ter preguiça de sair dos seus lençóis, e os lavradores madrugam mais do que ele. É verdade que está nu e que faz frio.
Como sopra o norte! Olha, pelo chão, os galhos caídos; o vento é tão áspero e direito, que estão todos paralelos, apontados para o sul.
O arado vai, como tosca arma de guerra, para o labor alegre da paz, Platero; e, no largo caminho húmido, as árvores amarelas, certas de reverdecer, alumiam de um lado e outro, como suaves fogueiras de ouro claro, o nosso rápido caminhar.

Juan Ramón Jiménez, Platero e Eu,
Lisboa, Livros do Brasil, s/d

Espanha, 1881-1958. Prémio Nobel em 1956.

Outono




















Foto A.M.




Tarde pintada
Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.

Miguel Torga, Diário X (1966)

As árvores











Foto A.M.




As folhas rebentam nas árvores
Como algo que quase se diz;
Os novos botões espreguiçam-se,
O verde é uma forma de mágoa.

Será que renascem, e nós
A envelhecer? Não, também morrem.
O truque que as faz parecer novas
Está escrito no grão dos anéis.

Porém os castelos inquietos
Adensam e crescem com o Maio.
Dizem: "passou, morreu o ano –
Recomecem, recomecem..."

Philip Larkin, Janelas Altas, Lisboa, Cotovia, 2004 (tradução de Rui Carvalho Homem)


Um dos maiores poetas ingleses do séc. XX (1922-1985), autor, entre muitas outras obras, de Night Ship, The whitsun Weddings e High Windows, última recolha dos seus poemas editada em vida. Dirigiu a Biblioteca da Univ. de Hull durante várias décadas. Morreu de cancro aos 63 anos, tal qual como o pai, que também fora bibliotecário.

Para saber mais, consultar a Wikipedia.

O pequeno demiurgo

escrevo barco e uma quilha fende o vastíssimo mar
e as árvores crescem dos espaços enevoados
entre olhar e olhar movem-se
animais presos à terra com as suas plumagens de ferro
e de orvalho de ouro quando a lua se eclipsa
comunicando-lhes o cio e a nómada alegria de viver

penso outono ou inverno
e o lume resinoso dos pinhais escorre sobre o rosto
sobre o corpo em tímidos gestos
eis o tempo
do capricórnio reduzido ao esconderijo tatuado
na asa mineral da ave em pleno voo e digo nuvens
relâmpago erva águas
homem
movimento do susto oceanos sal exaustos corpos
transumantes paixões digo
e surge irrompe escorre ergue-se move-se vive
morre
mas não julguem ser trabalho simples nomear e desordenar o mundo

para que não se apague esta trémula escrita
preciso do sonho e do pesadelo
da proximidade vertiginosa dos espelhos e
de pernoitar no fundo de mim com as mãos sujas
pelo árduo trabalho de construir os gestos exactos
da alegria que por descuido deus abandonou ao cansaço
no fim do sétimo dia

Al Berto, O Medo,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1997

Paisagem

Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exalação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética I,
Lisboa, Editorial Caminho, 1998, 4.ª ed.

Pinhal do rei















Catedral verde e sussurrante,
aonde a luz se ameiga e se esconde
e aonde, ecoando a cantar,
se alonga e se prolonga a longa voz do mar:
ditoso o "Lavrador" que a seu contento
por suas mãos semeou este jardim;
ditoso o Poeta que lançou ao vento
esta canção sem fim...

Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
rei D. Dinis, bom poeta e mau marido,
lá vem as velidas bailar e cantar.

Encantado jardim da minha infância,
aonde a minh'alma aprendeu
a música do Longe e o ritmo da Distância
que a tua voz marítima lhe deu;
místico órgão cujo além se esfuma
no além do Oceano, e onde a maresia
ameiga e dissolve em bruma,
e em penumbra de nave, a luz do dia.
Por estes fundos claustros gemem
os ais do Velho do Restelo...
Mas tu debruças-te no mar
e, ao vê-lo,
teus velhos troncos de saudades fremem...

Ai flores, ai flores do Pinhal louvado,
que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal louvado,
são as caravelas, teu corpo cortado,
é lo verde pino no mar a boiar.

Pinhal de heróicas árvores tão belas,
foi do teu corpo e da tua alma também
que nasceram as nossas caravelas
ansiosas de todo o Além;
foste tu que lhe deste a tua carne em flor
e sobre os mares andaste navegando,
rodeando a terra e olhando os novos astros,
ó gótico Pinhal navegador,
em naus, erguida, levando
tua alma em flor na ponta alta dos mastros!...

Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
que grande saudade, que longo gemido
ondeia nos ramos, suspira no ar!

Na sussurrante e verde catedral
oiço rezar a alma de Portugal:
ela aí vem, dorida, e nos seus olhos
sonâmbulos de surda ansiedade,
no roxo da tardinha,
abre a flor da Saudade;
ela aí vem, sozinha,
dorida do naufrágio e dos escolhos,
viúva de seus bens
e pálida de amor,
arribada de todos os aléns
de este mundo de dor;
ela aí vem, sozinha,
e reza a ladainha
na sussurrante catedral aonde
toda se espalha e esconde,
e aonde, ecoando a cantar,
se alonga e se prolonga a longa voz do mar.

Afonso Lopes Vieira, Ilhas de Bruma, 1917

Toada de Portalegre










Acácias-mimosas

Foto A.M.



Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Morei numa casa velha,
Velha, grande, tosca e bela,
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...
-
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- Quis-lhe bem, como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como ao do meu aconchego.

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De montes e de oliveiras,
Do vento suão queimada,
(Lá vem o vento soão!,
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão...)
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Na tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela,
Tinha, então,
Por única diversão,
Uma pequena varanda
Diante de uma janela
-
Toda aberta ao sol que abrasa,
Ao frio que tolhe, gela
E ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda
Derredor da minha casa,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos e sobreiros,
Era uma bela varanda,
Naquela bela janela!
-
Serras deitadas nas nuvens,
Vagas e azuis da distância,
Azuis, cinzentas, lilases,
Já roxas quando mais perto,
Campos verdes e amarelos,
Salpicados de oliveiras,
E que o frio, ao vir, despia,
Rasava, unia
Num mesmo ar de deserto
Ou de longínquas geleiras,
Céus que lá em cima, estrelados,
Boiando em lua, ou fechados
Nos seus turbilhões de trevas,
Pareciam engolir-me
Quando, fitando-os suspenso
De aquele silêncio imenso,
Eu sentia o chão a fugir-me,
- Se abriam diante dela
Daquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Na casa em que morei, velha,
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
À qual quis como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como ao do meu aconchego...

Ora agora,
Que havia o vento soão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Que havia o vento soão
De se lembrar de fazer?
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Que havia o vento soão
De fazer,
Senão trazer
Àquela
Minha
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
O testemunho maior
De que Deus
É protector
Dos seus
Que mais faz sofrer?

Lá num craveiro que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Poisou qualquer sementinha
Que o vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Achara no ar perdida,
Errando entre terra e céus...,
E, louvado seja Deus!,
Eis que uma folha miudinha
Rompeu, cresceu, recortada,
Furando a cepa cansada
Que dava cravos sem vida
Naquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...

Como é que o vento soão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Me trouxe a mim que, dizia,
Em Portalegre sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Me trouxe a mim essa esmola,
Esse pedido de paz
Dum Deus que fere... e consola
Com o próprio mal que faz?
-
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for
Me davam então tal vida
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Me davam então tal vida
- Não vivida!, mas morrida
No tédio e no desespero,
No espanto e na solidão -
Que a corda dos derradeiros
Desejos dos desgraçados
Por noites do vento soão
Já várias vezes tentara
Meus dedos verdes suados...
-
Senão quando o amor de Deus
Ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Confia uma sementinha
Perdida entre terra e céus,
E o vento a traz à varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela!

Lá no craveiro que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Nasceu essa acaciazinha
Que depois foi transplantada
E cresceu, dom do meu Deus!,
Aos pés lá da estranha casa
Do largo do cemitério,
Frente aos ciprestes que em frente
Mostram os céus,
Como dedos apontados
De gigantes enterrados...
-
Quem desespera dos homens,
Se a alma lhe não secou,
A tudo transfere a esperança
Que a humanidade frustrou:
E é capaz de amar as plantas,
De esperar nos animais,
De humanizar coisas brutas,
E ter criancices tais,
Tais e tantas!,
Que será bom ter pudor
De as contar seja a quem for!

O amor, a amizade, e quantos
Sonhos de cristal sonhara,
Bens deste mundo!, que o mundo
Me levara,
De tal maneira me tinham,
Ao fugir-me,
Deixando só, nulo, atónito,
A mim, que tanto esperara
Ser fiel,
E forte,
E firme,
Que não era mais que morte
A vida que então vivia,
Auto-cadáver...

E era então que sucedia
Que em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Aos pés lá da casa velha
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casa que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- A minha acácia crescia.

Vento soão!, obrigado...
Pela doce companhia
Que em teu hálito empestado
Sem eu sonhar, me chegava!
E a cada raminho novo
Que a tenra acácia deitava,
Será loucura!..., mas era
Uma alegria
Na longa e negra apatia
Daquela miséria extrema
Em que vivia,
E vivera,
Como se fizera um poema,
Ou se um filho me nascera.

José Régio, «Fado», in Poesia I,
Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2004