segunda-feira, 4 de janeiro de 2010
Domingo
Deslizo no asfalto sob o sol da manhã.
Lá em baixo o rio é uma cobra imensa de água; cheios
de sonho e ansiedade, esquecidos e serenos, os pescadores
de domingo estão atentos e pacientemente esperam
que do lodo surjam os peixes impossíveis.
Deixai-me na paz desta manhã tão clara, com os trigos
a rebentar da terra e aquela égua dando de mamar
ao seu potro inquieto e sedento de uma vida plena,
verdadeiramente plena, sem análise, nem tortura: ela mesmo,
incessantemente humilhada e triunfante. Por isso estes
torcidos galhos, onde de novo rebentam as folhas e flores,
me raspam de leve os cabelos e suavemente (poderosamente)
dizem aos homens atónitos que no asfalto
deslizam: Bom dia!
Um sardão de ventre azul dorme ao sol na berma da estrada: Bom dia!
Deslizo no asfalto; deixai-me nesta paz, ah que ninguém
me roube este momento!; bem sei que há gritos e sofrimentos
em toda a parte: ah, mas por um momento só!
ou seja o rodar apenas da minha bicicleta.
Roda, bicicleta, roda debaixo dos dardos de ouro
deste sol. Erguido a toda a minha grandeza e miséria,
me contemplo. Que fiz? Onde o que ambicionei?
Quase sem vigor a árvore cresce num solo ingrato
e em seus torcidos galhos
já não pousam as aves. Vamos, minha bicicleta, voemos
por sobre tanta grandeza malograda, voemos na brisa
deste momento. A meu lado voa a minha sombra,
companheira inseparável e silenciosa
das alegrias e angústias quotidianas.
Lé em baixo o rio e os barcos, lá em baixo os peixes
e os que, à linha, julgam poder libertá-los: Adeus, amigos!
Olhai como o sol esplende nos rails da minha bicicleta,
e como esta aragem é perfumada. Deslizo no asfalto velozmente,
deslizo, ergo-me, voo no tempo, plenamente desperto no sonho,
vou firme nas rédeas.
Tanta luta, tanta coisa mesquinha, tanta baixeza e desespero tanto
que às vezes o peixe salta do seu aquário.
E tanta coisa quotidiana e simples
como esta rapariguinha pondo uma flor no seus cabelos cor de palha.
Tanta coisa simples e transparente como este pequenino coração
palpitante de ilusões!, despido ainda de todos os véus.
Boa sorte, rapariguinha! Na vida, por certo, nada encontrarás
de tão belo como esta hora; eu e tu; mas sigamos nossos
imprevisíveis caminhos aqui um momento cruzados, e quem sabe?
Pudesse eu parar-te este momento, eternizar-te este segundo
que não mais voltará! Ah tivesse o tempo parado quando
o adolescente que eu era sentiu também o seu descuidado coração
arfar de felicidade! Tivesse o pequenino peixe transparente
saltado ao menos do seu aquário!
Agora, a deslizar na minha bicicleta, como tudo é suave,
como tudo é suavemente desesperado e sem remédio!
Lá em baixo, anónimos e esquecidos, os pescadores de domingo
esperam talvez por um tempo impossível em que os peixes
todos do mundo, cobertos de lodo e ânsia como o poeta, saltarão do seu aquário, enfim livres
da sua prisão de cristal,
enfim livres e aniquilados!
Papiniano Carlos, A Ave sobre a Cidade,
Porto, Livraria Paisagem, 1973