sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Imprecação pelos que amam e não são amados




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eu que não tenho nenhum deus no olhar

quando encaro o infinito
que há séculos não trago comigo o agnus-dei que minha mãe
me pregava na roupa interior
que já nem uso calças com um bolso pequenino
para guardar o terço que desbulhei mil vezes

arrependo-me ao menos por hoje
do meu inveterado ateísmo
e ajoelho a orar sobre a laje fria da vida
por quantos e quantas conheço
que não vêem amor pagar-se com amor

tu que és omnisciente e sabes quanto pena
um coração desprezado
tem piedade dos que amam e não são amados
tem dó dos que se encerram na sua concha
incapazes de fitar o sol da realidade
com a alma inútil feita rosa amarfanhada
e os olhos a desfiar longos rosários de lágrimas
tem compaixão dos homens e das mulheres
que esperam em vão um sinal de assentimento
que se enganam a si próprios transformando
delongas em indícios de prometimentos
e um simples sorriso num oásis sonhado para toda a vida

tu que és omnipotente e operas prodígios
caminhas imune sobre o debrum do mar ou sobre a corola das labaredas
torce por clemência o destino dos que amargam
o gelo cortante da inútil espera
a inclemência dos ponteiros especados num eterno segundo
o gume das palavras que não falam esperança
a insónia de um leito de pedregulhos
a solidão dos que de repente ficaram no meio do sara
no olho do furacão ou foram sugados por um buraco negro
o irremediável desespero dos que querem fugir de si próprios
e não encontram nenhum lugar habitável por meia hora que seja

tu que és omnipresente e conheces todos os mapas e roteiros
e sabes onde mora a salvação e a graça e a bem-aventurança
mostra outro caminho aos que ouviram apenas advérbios de negação
e vão levados pelos pés obsessivos para a beira dos abismos
para os resguardos das pontes para os abraços do mar
e ensina-lhes também outra solução para os dedos
que não sejam o cloral a estricnina a lâmina de barba
aguça-lhes o olhar para que perfurem todas as barreiras
e os altos muros que confinam os seus horizontes
e os sitiam no último reduto do desespero

tu que és a misericórdia a caridade a imensa mansidão
e sabes multiplicar as dádivas do céu e os bens da terra
amerceia-te dos que não querem outro pão
que não seja o aconchego do outro
que não querem outra água
que não seja o límpido olhar predilecto
que não querem outras vestes
que não sejam as mãos amadas que forram as suas mãos

não queiras senhor capaz de todas as mercês
que apaziguas as tormentas quando não as levantas
que te acuse de termos fome e não nos dares o verdadeiro maná
de termos sede e não te desentranhares em ternura
de desnudos não nos cobrires de bênçãos
de desvalidos e doentes não nos visitar o enfermeiro-mor
de estrangeiros uns dos outros
não nos hospedar a terra prometida

condói-te sobretudo dos que amam platonicamente
porque são impolutos na sua química espiritual
porque não estão poluídas as suas lágrimas de tão destiladas
e têm dentro de si o grande deslumbramento da beleza
que viram no olhar que os tocou
ou no sorriso que lhes pareceu aquiescente
os seus desejos nunca se conspurcaram
e o seu íntimo foi até à recusa a verdadeira imagem
da ansiada concórdia universal

vejo agora que tu senhor és o maior dos ateus
não crês em ti próprio porque sendo o amor
não cuidas dos que são a tua imagem viva mas sofrente
os que experimentam o amor e não têm o amor
os que sofrem de amor e morrem de amor
porque tu como todos os deuses
alcandorados longe dos mortais
nada queres com a sua miserável condição
a que os abandonaste sem lenitivo
eles aturam a fogueira do próprio amor
para depois se consumirem na sua própria implosão
amar e não ser amado é trazer uma granada dentro do peito

é por isso que a minha súplica se fez blasfémia
e vai ser choro e ranger de dentes
meus olhos não te procuram porque nunca te descortinarão
separo as mãos unidas de uma prece sem nexo
e na impotência que nos deixaste como herança
levo-as ao rosto para chorar amargamente
por todos os que são uma dádiva sem sentido
porque amam e amam e amam e nunca serão amados


Anthero Monteiro (inédito)
S. Paio de Oleiros, 28 e 29 de Dezembro 2009

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Poema extra-tema mensal do autor do blogue.