domingo, 24 de janeiro de 2010

Exercício de leitura básica numa sexta-feira 13



Château de
Saint-Germain-en-Laye








Ao volante, no periférico
de saint germain-en-laye, pela estrada engarrafada, enquanto as luzes
se acendem, e à minha frente um condutor sai do carro
para tirar o rádio do porta-bagagens, dou comigo na estrada
de lisboa para setúbal, já a chegar à curva de azeitão. No periférico
interior, ainda antes de versalhes, um ar de luzes decadentes
limpa o ar da poluição parisiense e traz de volta
essa curva de azeitão, já longe de lisboa, onde o carro hesita
antes de se meter na curva, como se preferisse entrar
em azeitão - mas para fazer o quê, em azeitão? Enquanto que aqui,
a caminho de saint-germain-en-laye, não tenho nada que
hesitar: versalhes, para a direita, não me chama;
pelo contrário, em saint germain-en-laye
há o liceu internacional onde, daqui a pouco, vou
ouvir gil vicente. Ouço-o em francês, em português, em franco-português
e, até, em brasileiro - mas de que outro modo poderia ouvi-lo, num liceu
internacional, a esse gil vicente, que se ficou pelo português e pelo
castelhano, se não contarmos com o galego e
com o latim de sacristia? Ouço-o, e enquanto o ouço dou mesmo essa
curva de azeitão, a fugir da arrábida, mesmo que o meu destino possa ser
setúbal onde não há nenhum liceu internacional, onde não se ouve gil
vicente em língua nenhuma, e onde nenhum condutor, no periférico que
vai de versalhes a saint germain-en-laye, sai do carro para tirar
o rádio do porta-bagagens, na estrada engarrafada que nunca poderia ser
a estrada deserta que os chevrolets tomavam para engarrafar
o caminho que leva de sintra a álvaro de campos.


Nuno Júdice, Teoria Geral do Sentimento,
Lisboa, Quetzal Editores, 1999