domingo, 3 de janeiro de 2010

Os 39 degraus




Feira antiga de S. Pedro de Sintra,
mais propriamente de
S. Pedro de Penaferrim
(Foto in
abrunheirasintra-
aldeiaviva.blogspot.com)









nos segundos e quartos domingos
de cada mês, o mundo é a feira de s. pedro
de sintra, desde que não chova muito.

pode encontrar-se tudo: puxadores de portas
e sacos de feijão, pinturas sobre cobre, pratos velhos,
pintainhos e plainas, regueifas, beringelas. umas pessoas sobem

até ao largo, e as outras descem, a apreçarem
calçado e hortaliças, caixinhas de música, tapetes,
ou a comerem queijadas e pevides, ou a comprarem flores,

ou simplesmente a olharem umas para as outras,
felizes por estarem na feira de s. pedro de sintra,
onde, além disso, ficam ao pé os ferros-velhos

e mesmo à mão as lojas de atoalhados muito coloridos.
os automóveis passam em fila devagar,
a g.n.r. não é muito detestável,

e os namorados sussurram «olha aquela
chaleira é que ficava bem lá em casa»,
eu «gosto mais do de barro azul e verde».

as mães conceituadas sentam-se com os maridos nos comes-e-bebes,
a descansarem os pés inchados, com a máquina fotográfica ao colo, atentas,
não vá passar algum carteirista roubador do sossego.

entretanto lá vem mais gente alegremente derreada
com cestinhos e alcofas a mostrarem
alhos-franceses, chouriços, queijos secos.

mesmo as crianças não desatam a espernear
por dá cá aquela palha, que querem aquela gaitinha,
numa gritaria imprópria dos perfumes da tarde.

depois, ao fim do dia, parece que não se passou nada,
as tendas foram desarmadas, as mercadorias
metidas em camionetas como bacorinhos.

a rua e o largo esvaziam-se à espera do primeiro
ou do terceiro domingo do mês, que ficam para a volta dos tristes,
e as pessoas foram-se embora quase de repente, sem

mais lembranças vagabundas de byron ou de beckford
ou de poetas em mangas de camisa,
desocupados por ali, plantados no meio do caminho.

das várias feiras dos arredores de lx.ª,
a de s. pedro de sintra é a que mostra o útil e o inútil
em toda a pacatez da sua beleza transportável.

Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessenta Anos,
Porto, Edições ASA, 2001
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O poema intitula-se "39 degraus" porque está escrito em 13 tercetos. Não sei se isso tem qualquer relação com o lugar onde é feita esta feira secular, que data do século XII, dos tempos de D. Maria. Para além disso, "39 degraus" é o titulo de um filme de Alfred Hitchcock (1935) e da obra de John Buchan, que lhe deu origem.
Há também um espaço assim denominado na Cinemateca Nacional, em Lisboa.