Leonardo Da Vinci,
La Gioconda, 1503-05,
estou só com todo o universo sobre os ombros
escuto apenas ao longe não sei se o mar
se o eco do perfume doce e macio da tua voz
o desfraldar dos cabelos que emolduram
o suave clarão do teu sorriso
o sussurrar alvoroçante da tua saia
abro as mãos vazias apenas sujas
de algumas cinzas que ficaram
dos parcos dias incendiados
algumas lembranças já ténues já dispersas
de um júbilo diferente de todos os outros regozijos
de uma exultação diferente de qualquer outra exaltação
teria que prolongar muitas léguas os dedos
para reencontrar o que por eles se escapou
e o coração que palpitava de outro modo
é agora um brinquedo inútil que ofereço
ao bisturi dos futuros cardiologistas
estou só e esforço-me por sorrir à solidão minha irmã
mas doem-me as comissuras tomadas de ferrugem
e o sorriso quebra-se como um copo em estilhaços
mas eu sei que é preciso enganar a tristeza
sempre mo disseste é preciso insistir
fazer como o ginasta que repete sem cessar
o exercício de esgarçar as pernas atrás da cabeça
estou só mas persevero
e é ainda alombando o universo e a amargura
que me coloco em frente ao teu retrato
e me ponho a treinar sorrisos copiando-os do teu
como um pintor aprendiz reproduzindo La Gioconda
ou um actor condenado a nunca entrar num happy ending.
Anthero Monteiro (inédito)
S. Paio de Oleiros, 5 de Janeiro 2010
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Poema extra-tema do mês