sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Amar













Luís Filipe Carvalho
na Onda Poética de ontem
a ler este poema,
um dos seus predilectos.



Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar ?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar ?
sempre, e até de olhos vidrados amar ?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar ?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia ?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001