quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Arrojos

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Cesário
Verde



Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,

Eu domaria o mar que se enfurece

E escalaria as nuvens rendilhadas.


Se ela deixasse, extático e suspenso,
Tomar-lhe as mãos mignonnes e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso

Apagaria o nome das estrelas.


Se aquela que amo mais que a luz do dia,

Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria

O clarão dos relâmpagos nocturnos.

Se ela quisesse amar, no azul do espaço,

Casando as suas penas com as minhas,

Eu desfaria o Sol como desfaço

As bolas de sabão das criancinhas.


Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,

Eu pararia o curso aos grandes rios

E a terra sob os pés abalaria.


Se aquela por quem já não tenho risos

Me concedesse apenas dois abraços,

Eu subiria aos róseos paraísos

E a Lua afogaria nos meus braços.


Se ela ouvisse os meus cantos moribundos

E os lamentos das cítaras estranhas,

Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.


E se aquela visão da fantasia

Me estreitasse ao peito alvo como arminho,

Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.


Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde,
Lisboa, Editorial Minerva, 1975, 12.ª ed.


Quando em 1887, este livro póstumo foi editado por Silva Pinto, ninguém imaginaria decerto que este quase opúsculo, com menos de 50 poemas, fizesse gravar o nome de Cesário Verde (1855-1886) em letras indeléveis nas páginas da nossa Literatura. É simplesmente um dos maiores, e o próprio Fernando Pessoa se rendeu à arte poética deste agricultor.