quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Invocação à mulher única












Marc Chagall,
Woman in Village
, in
www.aniwilliams.com


Tu, pássaro – mulher de leite! Tu que carregas as lívidas glândulas do amor acima do sexo infinito

Tu, que perpetuas o desespero humano – alma desolada da noite sobre o frio das águas – tu
Tédio escuro, mal da vida – fonte! jamais... jamais... (que o poema receba as minhas lágrimas!...)
Dei-te um mistério: um ídolo, uma catedral, uma prece são menos reais que três partes sangrentas do meu coração em martírio
E hoje meu corpo nu estilhaça os espelhos e o mal está em mim e a minha carne é aguda

E eu trago crucificadas mil mulheres cuja santidade dependeria apenas de um gesto teu sobre o espaço em harmonia.

Pobre eu! sinto-me tão tu mesma, meu belo cisne, minha bela, bela graça, fêmea

Feita de diamantes e cuja postura lembra um templo adormecido numa velha madrugada de lua...
A minha ascendência de heróis: assassinos, ladrões, estupradores, onanistas – negações do bem: o Antigo Testamento! – a minha descendência

De poetas: puros, selvagens, líricos, inocentes: O Novo Testamento afirmações do bem: dúvida

(Dúvida mais fácil que a fé, mais transigente que a esperança, mais oportuna que a caridade

Dúvida, madrasta do gênio) – tudo, tudo se esboroa ante a visão do teu ventre púbere, alma do Pai, coração do Filho, carne do Santo Espírito, amém!
Tu, criança! cujo olhar faz crescer os brotos dos sulcos da terra – perpetuação do êxtase
Criatura, mais que nenhuma outra, porque nasceste fecundada pelos astros – mulher! tu que deitas o teu sangue
Quando os lobos uivam e as sereias desacordadas se amontoam pelas praias – mulher!
Mulher que eu amo, criança que amo, ser ignorado, essência perdida num ar de inverno.
Não me deixes morrer!... eu, homem – fruto da terra – eu, homem – fruto do pensamento eu, himem – fruto da carne
Eu que carrego o peso da tara e me rejubilo, eu que carrego os sinos do sêmen que se rejubilam à carne

Eu que sou um grito perdido no primeiro vazio à procura de um Deus que é o vazio ele mesmo!
Não me deixes partir... – as viagens remontam à vida!... e porque eu partiria se és a vida, se há em ti a viagem muito pura

A viagem do amor que não volta, a que me faz sonhar do mais fundo da minha poesia
Com uma grande extensão de corpo e alma – uma montanha imensa e desdobrada – por onde eu iria caminhando

Até o âmago e iria e beberia da fonte mais doce e me enlanguesceria e dormiria eternamente como uma múmia egípcia

No invólucro da Natureza que és tu mesma, coberto da tua pele que é a minha própria – oh mulher, espécie adorável da poesia eterna!

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Vinicius de Moraes, Antologia Poética,
São Paulo, Companhia das Letras, 1992