segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

O jardim adormecido









Mahnud Darwich in
www.campo-letras.pt/noticia.html



Quando o sono a tomou nos braços, retirei a mão,
contornei os seus sonhos,
vi o mel desaparecer atrás das suas pálpebras,
orei por duas pernas miraculosas.
Inclinei-me sobre as palpitações do seu coração,
vi trigo sobre mármore e sono.
Uma gota do meu sangue chorou,
estremeci...
Um jardim dorme no meu leito.

Dirigi-me para a porta
sem olhar para a minha alma sempre adormecida.
Ouvi o rumor antigo dos seus passos e o sino do meu coração.
Dirigi-me para a porta.
- A chave está na sua bolsa
e ela dorme como um anjo depois do amor -
Noite chuvosa na rua e nenhum ruído,
a não ser as palpitações do seu coração e a chuva.
Dirigi-me para a porta.
Esta abre-se.
Saio.
Ela fecha-se.
A minha sombra desliza atrás de mim.
Porque digo adeus?
Eu sou, a partir de agora, estranho às lembranças e à minha casa.
Desci as escadas.
Nenhum ruído,
a não ser as palpitações do seu coração, a chuva
e os meus passos sobre os degraus que vão
das suas mãos a um desejo de viajar.

Cheguei à árvore.
Aqui, ela abraçara-me.
Aqui, feriram-me raios de prata e de cravos.
Aqui, começava o seu universo.
Aqui, ela terminava.
Parei durante alguns instantes feitos de lírio e de inverno,
caminhei,
hesitei,
depois avancei.
levava os meus passos e a minha memória salgada.
Caminhei na minha companhia.

Nem adeus nem árvore.
Os desejos adormeceram atrás das janelas,
as histórias de amor e as traições
adormeceram atrás as janelas,
e os agentes de segurança também.
Rita dorme... dorme e desperta os seus sonhos.
De manhã terá o seu beijo
e as suas visitas,
em seguida preparará o meu café árabe
e o seu café com leite.
Interrogar-me-á, pela milésima vez, sobre o nosso amor.
Responder-lhe-ei:
Eu sou o mártir das mãsos que
todas as manhãs me preparam o café.
Rita dorme... Dorme e desperta os seus sonhos
- Vamos casar-nos?
- Sim.
- Quando?
- Quando o lilás crescer nos bonés dos soldados.
Ultrapassei as ruelas, o edifício dos correios, as esplanadas dos
cafés, as boites nocturnas e as suas bilheteiras.
Amo-te, Rita. Amo-te. Dorme.
Daqui a treze invernos, perguntarei,
perguntarei:
- Ainda dormes?
- Já acordaste?
Rita! Rita, amo-te.
Amo-te...

Mahmud Darwich, O Jardim Adormecido e outros poemas,
Selecção e tradução de Albano Martins,
Porto, Campo das Letras, 2002

M.D., o poeta dos palestinos, nasceu na Galileia em 1942 e faleceu a 8 de Agosto de 2008 num hospital de Houston, nos Estados Unidos, na sequência de uma intervenção cirúrgica ao coração.
Em 1948, as tropas israelitas obrigaram-no a partir com a família para o exílio, regressando clandestinamente um ano depois. Foi preso cinco vezes. Viveu em Moscovo, no Cairo, em Beirute, em Amã (Jordânia) e Ramallah (Palestina).
Em 1993, demitiu-se da OLP, a que aderira, em protesto contra os acordos de Oslo. Criticava a «mentalidade israelita de guetto» e a política que impediu a criação de um estado palestino viável. Neste poema e noutros poemas, Rita é a sua amada israelita.
Darwich ficou muito conhecido na sequência do seu poema "Bilhete de Identidade":

"Escreve!
Sou árabe.
Roubaste os pomares dos meus antepassados
e a terra que eu cultivava com os meus filhos;
não me deixaste nada,
apenas estas rochas;
O governo vai tirar-me as rochas,
como me disseram?
(...)"