quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

O Amor e a Saudade

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O Amor teve uma filha à qual chamou Saudade:

Vendo-a crescida,
Vendo-a na idade
De entrar na vida,
Disse-lhe assim um dia:

- Envelheci; no meu jardim cai neve...
Já sinto a alma fria,
E no corpo entrará também o frio em breve...
De noite, vejo só negrume de ataúdes;
Tudo é inverno p'ra mim; abril, acho-o grisalho...
Velho e doente, é justo, filha, que me ajudes
No meu trabalho.
Auxilia-me pois! Quando os amantes,
O seio contra o seio,
Enleados estão em tão suave enleio,
Que as longas noites tomam por instantes,
Ao pé deles me querem sempre, e assim,
Se p'ra deixá-los, já cansado, estou,
Começam a chamar por mim,
A perguntar-me para onde vou...
Nunca me deixam, nunca estou tranquilo!
Como o trabalho é rude, de hoje em diante
Devemos reparti-lo,
Que eu já me sinto fraco e vacilante...
De hoje em diante, irei deitar os namorados,
Mas tu, Saudade, junto deles ficarás,
E ao chamarem por mim, em gritos sufocados,
Fingindo a minha voz, tu lhes respoonderás...
Fazem-me louco
As noites mal dormidas,
E assim já poderei dormir um pouco
E recobrar até as minhas cores perdidas...
Vamos! O velho sol já se extinguiu
E a lua branca rompendo vai...

E a Saudade partiu
Atrás do Pai...

Desde essa noite azul, ébrios de pasmo e dor,
Os que se beijam com ansiedade
Adormecem ao pé do Amor
E acordam junto da Saudade...

Eugénio de Castro, in Viale Moutinho, O Amor na Poesia Portuguesa,
Porto, Familia 2000, 1975