quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

A omeleta


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Abrimos a janela por onde se insinua
uma forma de vento: instala-se
na cozinha um convite de amor. A luz
crepita para que os pêssegos madurem
e a panela canta como se olhasses
o rio; pico a cebola
como se gradasse a terra, beijo-te
a nuca, as batatas aparecem descascadas;
um pássaro chilreia no ar do jardim
como se fosse ele o nosso coração. Um anjo
vela o saco das compras, um saco de plástico
onde embainhámos a geada das sombras, ali
poderão roer longamente as unhas.
Respiro-te. A voz do frigorífico
entoa sobremesas com a arte da poesia.
O poema leveda no trigo dos olhares.
Ao transcrevê-lo
direi que o nosso coração chilreia
no ar do jardim
como se fosse um pássaro no mais alto
ramo. No poema
é necessário transfigurar a realidade.
Os camarões congelados contagiam o texto
ao ganharem cor na água que ferve.
Cozem; agora
é só bater os ovos.

Egito Gonçalves, A Ferida Amável,
Porto, Campo das Letras, 2000

Este poema dava para um longo debate sobre a Poesia e o que ela é em relação à prosa e em relação com os seus eventais referentes da realidade. Poder-se-ia perguntar:
O que aqui se lê é mesmo poesia? O que é que no texto a evidencia?
De que fala este poema? Do amor? Do trabalho da cozinha? Ou do trabalho do poeta?
É talvez tudo isso, mas não há dúvida de que nele se traça um paralelo entre a arte culinária de fazer uma omeleta e a arte poética: "No poema é necessário transfigurar a realidade." E é isso que faz aqui o poeta.
Vem tudo isto a propósito de textos que ouço ler, como ainda aconteceu ontem no Púcaro´s Bar: anuncia-se um poema e depois o que se ouve é um texto bem escrito, sem dúvida, mas que de poesia talvez pouco tenha: não há qualquer transfiguração da realidade, as palavras são as de todos os dias com os mesmos referentes de todos os dias e eu teria preferido que anunciassem um texto em prosa, que ter-me-ia sabido muito melhor. Não o disse na altura, porque não quis parecer nem pretensioso nem paternalista e nem sei se seria bem aceite. Além disso, não é muito habitual discutirem-se os textos que ali se lêem. E não há dúvida de que ali também se podem ouvir belíssimos poemas (que o são) e excelentes "diseurs".

Talvez fosse interessante fazer exercício idêntico ao que aqui é proposto com o texto "Presente do Indicativo" de Vasco Graça Moura: aqui.