segunda-feira, 19 de janeiro de 2009
Elegia do progresso
Boris Vian in
lamerpourhorizon.ne
Noutros tempos ao fazer a corte
falava-se de amor
e como prova do nosso ardor
oferecia-se o coração.
Hoje já não é como dantes
está tudo mudado
Pra seduzir o ente adorado
murmura-se-lhe ao ouvido
Ah... Gudule... Vem-me dar um beijo...
E eu dou-te...
eu dou-te um frigorífico
uma boa lambreta
um atomizador
um fogão de cozinha
com um forno de vidro
montes de cobertores
e facas para bolos
um torniquete
pra fazer vinagrete
um bom ventilador
para tirar os odores
lençóis aquecidos
uma pistola de biscoito
um avião para dois
e vamos ser felizes
e vamos ser felizes
Noutros tempos se acontecesse
a gente desentender-se
partíamos com ar lúgubre
deixando ficar a baixela
mas hoje o que é que querem
a vida está tão cara
dizemos volta prà tua mãe
e ficamos com tudo
Ah... Gudule... Pede desculpa... ou ...
ou fico com tudo
o meu frigorífico
o meu aparador
o meu lava-loiça de ferro
o meu fogão a petróleo
o meu encera-chanatos
o meu passa-lesmas
o meu banco de espelho
o meu caça-malandros
o torniquete
pra fazer vinagrete
o encolhedor de lixo
e o corta-batatas-fritas
e se a bela
inda se mostrar rebelde
pômo-la na rua
pômo-la na rua
e confiamos o nosso destino
ao frigorífico
ao apaga-poeira
ao fogão de cozinha
à cama sempre feita
ao aquece-sapatas
ao canhão de batatas
ao esventra-tomates
ao esfola-galinhas
mas muito muito em breve
receberemos a visita
de uma terna miúda
de uma terna miúda
que nos oferece o coração
sim que nos oferece o coração
então logo cedemos
temos de ser uns prós outros
e vivemos assim
e vivemos assim
até á próxima vez
até à próxima vez
Boris Vian, Canções e Poemas,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1997
(Proposta de leitura do texto a dois, de acordo com o estilo do tipo de letra)