segunda-feira, 29 de setembro de 2008

brinquedos






verdadeiramente nunca tive brinquedos
a não ser as pedras das veredas
por onde um dia me arrastou
a única ovelha que pude cavalgar

fiz corridas com os coelhos e as raposas
até às luras lá em baixo perto do moinho
e conheci o senhor sapo-concho
na lentidão das histórias da minha avó

experimentei a luz de mil sóis profusos
nas corolas dos pampilhos
aprendi a humildade no recato das violetas
a métrica da primeira palavra difícil nas miosótis
a música secreta do infinito nos arrebóis
e a vaidade no tanque onde desconfiei da morte
no asco das salamandras

aprendi sobretudo a divertir-me com as palavras
ali pertinho debruçadas dos lábios
joguei sempre com elas às escondidas
levantei-lhes as saias
enrodilhei-me com elas no barro da criação

apedrejei a minha infância
quando encontrei a raiva das alcunhas
mas flori de verdade o meu sorriso virgem
quando julgando magoar-me
me apelidaram de poeta

Anthero Monteiro, Desesperânsia, Corpos Editora, 2003