terça-feira, 30 de setembro de 2008

O poeta beija tudo

O poeta beija tudo, graças a Deus... E aprende com as coisas a sua lição de sinceridade...

E diz assim: "É preciso saber olhar..."

E pode ser, em qualquer idade, ingénuo como as crianças, entusiasta como os adolescentes e profundo como os homens feitos...

E levanta uma pedra escura e áspera para mostrar uma flor que está por detrás...

E perde tempo (ganha tempo...) a namorar uma ovelha...

E comove-se com coisas de nada: um pássaro que canta, uma mulher bonita que passou, uma menina que lhe sorriu, um pai que olhou desvanecido para o filho pequenino, um bocadinho de sol depois de um dia chuvoso...

E acha que tudo é importante...

E pega no braço dos homens que estavam tristes e vai passear com eles para o jardim...

E reparou que os homens estavam tristes...

E escreveu uns versos que começam desta maneira: "O segredo é amar..."

Sebastião da Gama, Diário, Lisboa, Edições Ática, 1975, 5.ª ed.

«Sebastião Artur Cardoso da Gama dava, naquele ano, aulas na Escola Comercial e Industrial de Estremoz. Era homem muito dado a beijos e a cumprimentos. Essas efusividades acabaram por valer-lhe uma chamada ao gabinete do director: Sebastião ouviu uma valente reprimenda: que o meio era pequeno, que as meninas suas alunas já não eram crianças, que podiam ficar mal vistas, que não era desconfiar da sua seriedade, que sabia, sim senhor, que não era por maldade o que fazia, mas que, por amor de Deus, pusesse termo à beijoquice, que ficava mal, que não era de bom tom, que homem nenhum beijava uma mulher que não fosse a sua. Sebastião, de pé, ouviu até ao fim. Terminadas as palavras do director, chegou-se perto, respondeu-lhe que sim-senhor, rasgou um sorriso, agradeceu, baixou-se e beijou-o na testa.»

Transcrito, com a devida vénia, de Escritos,
in http://parvoicesminhas.blogspot.com/