terça-feira, 30 de setembro de 2008

O poema


O poema me levará no tempo

Quando eu já não for eu

E passarei sozinha

Entre as mãos de quem lê


O poema alguém o dirá

Às searas


Sua passagem se confundirá

Como rumor do mar com o passar do vento


O poema habitará

O espaço mais concreto e mais atento


No ar claro nas tardes transparentes

Suas sílabas redondas


(Ó antigas ó longas

Eternas tardes lisas)


Mesmo que eu morra o poema encontrará

Uma praia onde quebrar as suas ondas


E entre quatro paredes densas

De funda e devorada solidão

Alguém seu próprio ser confundirá

Com o poema no tempo


Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto,
Lisboa, Edições Salamandra, 1964, 6.ª ed.