quarta-feira, 12 de agosto de 2009
Controvérsia
Reprodução de
desenho da
1.ª edição (1997)
da autoria de
Carmo Sousa
Pinto
Bem sei que o breve tempo da tua presença
é a maior de todas as minhas glórias
que o esboço do teu sorriso
é um sol estival e festivo
que um minúsculo gesto dos teus
abre o mar e os raios suspende
que o mais ténue dos teus cabelos
é amarra do meu navio
O oftalmologista sabe das minhas perturbações de visão
e os estilistas dão-lhe o nome de hipérbole
Bem sei que todas as estrelas lucilam
inquietas dentro destes olhos
e que as nuvens do sono as não apagam
Os ponteiros do relógio caminham trôpegos
mas há ponteiros desvairados na máquina que sou
que apontam para ti a cada segundo
que a cada segundo me despertam e alarmam
que a cada segundo gritam o mesmo nome sem tréguas
como se fossem os galos da alvorada
Todos os médicos estão de acordo:
isto não passa de uma insónia permanente
e o stress anda a minar-me os labirintos
Bem sei que perscruto o horizonte com olhos indefinidos
que os outeiros copiaram a forma dos teus seios
que as árvores se emaranharam nos teus cabelos
que o mar se espraia no teu olhar
que as linhas da tua mão esplendem na Cassiopeia
que os teus dedos espalham na vida os nocturnos de Chopin
que a tua cinta se requebra nos caprichos do vento
que o teu andar diáfano caminha com as tardes translúcidas
Há muito que Freud me explicara
que a lapa da obsessão se cravou na minha alma
Bem sei que tenho outra compostura
desde que aos meus olhos de dentro te revelaste
mas é que há em todas as coisas
sucursais do teu penetrante olhar
e eu quero que me vejas belo e magnânimo
bom e cordato justo e indulgente
ao menos desbotada imagem do teu fulgor
Dizem que são reminiscências duma moral esquecida
escrúpulos de volta aos meus ditames
Bem sei que agora mesmo
(deixa-me só concluir o meu poema)
não me importava de morrer
amarfanhado como uma pétala nas tuas mãos
sim desde que fossem as tuas
e ser em breve o almo húmus
donde brotassem nitentes magnólias à tua porta
Não me importava de beber o mar profundo
desde que fosse a tua suavidade
a empurrar-me para o abismo
Consta que é apenas velhice
este ter passado os dedos nas mil camândulas
do rosário de enganos e desenganos
que nos traz esta ânsia de não-ser
Todos terão razão Provavelmente
decidirão que nada disto é amor
Opinarão que vim de outra galáxia a cavalo de um meteoro
com estranhos ritos e palavras extravagantes
dulcíloquas mas previamente gravadas
Pensarão que os meus olhos hão-de estalar
que estas insónias só terão cura no sono da morte
que esta obsessão me levará ao convívio com os doidos
que estes escrúpulos serão o revólver do meu suicídio
que da minha campa só nascerão pedras e nunca magnólias
Pronunciem-se todos os sábios e psicólogos
conjecturem todos os analistas
julguem-me todos os juízes (e tantos são)
condenem-me e enforquem-me por impostor
A mim só me interessa o teu veredicto
Se me sorrires como só tu sabes
é porque é inelutável esta verdade:
Afinal
outra coisa não sei que não seja amar-te
Anthero Monteiro, Canto de Encantos e Desencantos,
Vila Nova de Gaia, Corpos Editora, 2005, 2.ª edição
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Deixem-me continuar a gostar muito deste poema...
e a incluí-lo na minha antologia pessoal
entre os cinco melhores (de Anthero Monteiro, claro).
Assim não têm que me apontar qualquer imodéstia...